Ser judeu sem Estado-nação: memória, rutura e um “não em nosso nome”

por Carolina Salgueiro Pereira,    15 Outubro, 2025
Ser judeu sem Estado-nação: memória, rutura e um “não em nosso nome”
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“Para mim, ser anti-sionista é rejeitar a ideia de que eu tenho o direito de viver num país onde as pessoas que lá nascem não têm direitos.” Não é renúncia à identidade judaica — é o contrário. (…) Separar antissemitismo de anti-sionismo é tarefa de higiene democrática: protege judeus, protege palestinianos, protege a linguagem da manipulação.

Jonathan Benebgui nasceu em Madrid, entre línguas, fronteiras e heranças cruzadas: pai português, mãe espanhola; ascendências marroquina e ashkenazi; casa judaica e, sobretudo, israelita. “Eu não cresci no judaísmo — cresci no israelismo”, diz. Israel estava nas conversas, nas viagens, nos jornais escolhidos, na decoração. Era o mapa afetivo e político que prometia refúgio diante do antissemitismo cotidiano – as piadas na escola, o medo difuso, a vergonha herdada.

A adolescência abriu uma fissura: a vontade de pertencer ao lugar onde vivia, de ser judeu aqui, sem um passaporte mítico. “Queria ser um cidadão do sítio onde nasci e cresci e, ao mesmo tempo, manter a minha identidade judaica.” Só que a gramática recebida confundia “judeu” com “israelita”. O Estado-nação surgia como condição de segurança; a Palestina, como ameaça. Já adulto, recebeu o convite para a Birthright/Taglit — dez dias de turismo identitário, guiados, em parte, por militares. Leu relatos, percebeu a engenharia simbólica, e recusou. Ficou a pergunta: que judaísmo sobra quando desligamos a tomada do Estado?

A resposta começou em 2019, na Palestina. Foi “ver os dois lados” e encontrou uma assimetria incontornável: um regime de separação, militarização quotidiana, um muro que racha o mapa e as biografias. O choque, porém, veio com a hospitalidade. Em Nablus, num bar, decidiu dizer em voz alta: “Sou judeu.” Preparou-se para a rejeição. Recebeu um abraço. “Habibi, está tudo bem.” O padrão repetiu-se: histórias de prisão e luto, e ainda assim cadeiras puxadas, copos partilhados, perguntas curiosas, gratidão por ele estar ali. O medo chegaria mais tarde, do lado israelita, quando um militar o travou num controlo: “Eles odeiam-te. Arriscaste a vida.” O corpo lembrava outra coisa. A rutura fez-se ali: a experiência de acolhimento colidia com o dogma de que “os palestinianos querem matar-nos”.

Dessa fratura nasceu uma definição simples e radical: “Para mim, ser anti-sionista é rejeitar a ideia de que eu tenho o direito de viver num país onde as pessoas que nascem lá não têm direitos.” Não é renúncia à identidade judaica — é o contrário. Jonathan convoca uma tradição antinacionalista e antifascista judaica para recusar essencialismos étnicos. A história ensina que enclausurar uma minoria não a protege; isola-a e reproduz sistemas de exclusão que atingem outros corpos. O Holocausto foi crime contra judeus — e também contra ciganos, pessoas LGBT+, dissidentes políticos. Combater o antissemitismo aqui, no lugar onde vivemos, é o oposto de empurrar judeus para uma “ilha” construída à custa da expulsão de outro povo.

A força política desta rutura ganha espessura quando a colocamos em contexto. Nos últimos anos, organizações de direitos humanos passaram a descrever o regime israelita como apartheid, documentando um sistema de dominação e segregação que não se limita a Gaza e atravessa a Cisjordânia e Israel. Em 2024, o Tribunal Penal Internacional avançou com mandados de captura contra líderes israelitas por crimes de guerra e contra a humanidade – num gesto que quebrou a impunidade diplomática e que, apesar das disputas jurídicas, marca o debate público global. Ao mesmo tempo, uma geração de judeus na diáspora tem-se organizado para dizer “não em nosso nome”: de IfNotNow nos EUA a Na’amod no Reino Unido, passando por mobilizações massivas da Jewish Voice for Peace, com detenções no Capitólio durante ações pelo embargo de armas. E há ecos mais antigos: sobreviventes do genocídio nazi publicaram em 2014 um apelo internacional lembrando que a memória não legitima ocupações — adverte-as. Estas histórias enlaçam a de Jonathan e ajudam a desmontar a equivalência automática entre “judeus” e “Estado de Israel”: existem judaísmos políticos que recusam a ocupação, e eles têm passado, presente e futuro.

Dizer isto em público tem custos. “Self-hating Jew”, portas que se fecham, discussões de família. Ainda assim, Jonathan escolheu a rua: cartazes solitários em manifestações, até que outros cartazes apareceram. Em 2023, no arranque do genocídio em Gaza, ajudou a fundar em Portugal o coletivo Judeus pela Paz e pela Justiça. O gesto tem força pedagógica: “não em nosso nome”. Não em nome dos judeus, a ocupação; não em nome das vítimas do Holocausto, a política de apartheid; não em nome da “segurança”, um regime de exceção permanente. E não por cálculo tático, mas por fidelidade a uma ética judaica que ele descreve assim: denunciar nacionalismos e exclusivismos onde quer que se instale o poder de esmagar.

A rutura não apaga a memória familiar – reinscreve-a noutro léxico. Jonathan continua a celebrar festas judaicas, a ler autores judeus, a discutir com os pais. A mãe, ex-militar israelita, hoje identifica-se como anti-sionista; com o pai, as conversas tornaram-se possíveis onde antes havia silêncio. Os filmes também ajudam: Israelism (2023) retrata jovens judeus que, ao ver a ocupação de perto, recusam herdar sem crítica a narrativa “Israel = nós”. Em paralelo, a extrema-direita europeia e norte-americana abraça Israel como modelo de fronteira armada — prova de que o apoio incondicional a Telavive não nasce do amor aos judeus, mas da normalização de políticas de exclusão. Separar antissemitismo de anti-sionismo é tarefa de higiene democrática: protege judeus, protege palestinianos, protege a linguagem da manipulação.

Jonathan não quer um passaporte que valha acima de outras vidas; quer o óbvio — judeus em segurança em qualquer lugar e palestinianos com direitos onde nasceram (no mínimo). Entre a memória do medo e a prática do abraço, entre a herança e a rutura, ergue-se um judaísmo político capaz de dizer não à ocupação com a mesma clareza com que diz sim à vida comum. E talvez seja esse o começo de um fim: quando a memória deixa de ser usada como escudo e volta a ser bússola.


Fontes

Este artigo baseia-se na entrevista com Jonathan Benebgui no podcast Yalla e em diversos materiais complementares: o livro coletivo On Antisemitism (Jewish Voice for Peace, 2017), que distingue antissemitismo de crítica a Israel; informação pública sobre o programa Taglit–Birthright Israel; os relatórios que qualificam como apartheid o sistema de dominação israelita (Amnistia Internacional, 2022; Human Rights Watch, 2021); o documentário Israelism (2023), sobre a rutura geracional no judaísmo norte-americano; o apelo de sobreviventes do genocídio nazi publicado como anúncio no New York Times em 2014 contra a utilização da memória para justificar ataques a Gaza; e registos de mobilizações judaicas anti-sionistas recentes, incluindo ações da Jewish Voice for Peace no Capitólio dos EUA (2023–2024) e a organização Na’amod no Reino Unido, que situam esta rutura individual numa viragem coletiva.

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