Ser médico por si só já não chega, é preciso mais
O paternalismo médico choca com um princípio básico do doente, a autonomia. A facilidade com que se procura informação de cariz médico aumentou imenso nos últimos anos. Entre outras coisas, a era da informação tornou o papel do clínico de mais difícil execução, fazendo com que o uso do direito da autonomia por parte do doente o tornasse mais propenso a tomar como certos, factos errados. Aqui entra o paternalismo, um médico, como é óbvio, tem que respeitar a autonomia do doente, mas tendo este uma “opinião” não factual da doença que possa ou não ter, o que deverá fazer um médico? Platão, na sua obra “Górgias”, dá um exemplo que hoje em dia bem podia ser real noutros termos .
“É assim que a cozinha toma a forma da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que , se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, medico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer de fome.”
As pessoas ouvem o que querem ouvir, assim se encontrarem alguma página na Internet ou alguém não capaz que lhes assegure um diagnóstico feito por eles próprios, apesar de diferente do médico, algumas vão aceitar como certo. Às vezes uma constipação é apenas uma constipação, não precisa de ser cancro. Isto não quer dizer que os médicos não errem, porque de facto acontece, apenas quer dizer que para contornarem este mar de informação erróneo, confuso para os doentes, tem que cultivar uma habilidade específica, a retórica.
A retórica é a arte de bem falar, de mostrar eloquência diante de um público, autónomo, de maneira a ganhar a sua causa. Um médico tem que ser capaz de convencer o seu doente que é apto para o curar, de maneira a que haja adesão ao plano terapêutico. A retórica é uma ferramenta muito poderosa e perigosa, portanto não pode ser usada sozinha.
O conhecimento científico é importantíssimo, o método científico é o responsável por ter tornado a medicina ocidental tão eficaz na arte da cura. No entanto, ultimamente, devido à sua desumanização os doentes têm-se virado para medicinas alternativas, como a homeopatia, que carecem de qualquer base factual ou científica. Os escândalos, protagonizados pelas farmacêuticas, também ajudam à descredibilização da medicina. Basta ver a realidade em Portugal, com facções políticas pró-terapêuticas não convencionais a quererem tornar um homeopata ou osteopata equiparáveis a um profissional de saúde sendo que, qualquer dia, “medicamentos” homeopáticos são abrangidos pelo SNS. Assim, com esta desvalorização do papel do médico, a capacidade de ser persuasivo torna-se inestimável. Consome um clínico ver um doente fazer uma decisão não informada, a ser enganado por pura propaganda, por xamãs dos dias modernos que prometem curas baseadas em efeitos placebo. Compete ao médico ver nestas adulações, por parte dos “cozinheiros” dos dias de hoje, um cenário errado, o qual tem de ser combatido, o mais ferozmente possível, com unhas e dentes.
Na prática, o que quer isto dizer? Os profissionais de saúde tem de ser flexíveis, não naquilo que dizem, mas na maneira como o dizem. Esta adaptabilidade confere uma maneira de persuasão forte, quando alienada ao sentimento, por parte do doente, de que está a ser ouvido. Ao tornar a medicina mais humana, mais próxima do doente, combate-se, na minha opinião, este recente obstáculo à prática médica. Ser médico por si só já não chega, é preciso mais.
Cónica de Afonso Delgado Gonçalves, originalmente publicado na revista Ressonância, da Faculdade de Medicina.
Afonso, estudante de 22 anos, entusiasta de tudo o que implica pensar e detentor de uma curiosidade infindável. Devorador de tudo o que esteja em palavra escrita, inclusive o rótulo da constituição do champô. No fundo, um aspirante wannabe a médico-filósofo.