Será este o primeiro filme da história com uma cena de violação?

por Gabriel Margarido Pais,    27 Setembro, 2016
Será este o primeiro filme da história com uma cena de violação?

Hoje em dia, raro é o assunto tabu quando se trata de cinema. É difícil imaginar uma polémica que ainda não tenha sido explorada no grande ecrã, ou um problema social que ainda não tenha sido retratado pela sétima arte. Pode-se argumentar então que o cinema orbita um pouco à volta dos mesmos, e, quando atacados de maneira honesta e com uma atitude crítica, estes assuntos podem ser debatidos como nunca antes, tudo graças a uma ‘amostra’ do mesmo no mundo da arte.

Filmes como The Girl With the Dragon Tattoo, Trust ou Cape Fear retrataram e fizeram-nos prestar mais atenção a um tema que se tem tornado um mal cada vez mais presente: a violação. Em Portugal, a cada ano são batidos recordes no número de casos de violação ou abuso sexual, sendo que ao mesmo tempo são poucos os casos que são denunciados. Em 2014, foram registados 374 casos, o que significa uma subida de quase 9% em relação ao ano anterior. Mas o problema não pode ser visto apenas desta maneira. Existem grupos sociais que apresentam um risco muito maior de sofrerem abusos sexuais durante a vida (no caso de pessoas portadoras de deficiências motoras, 50% das queixas do ano passado foram diretamente relacionadas com violações ou abusos sexuais), da mesma forma que 75% das vezes em que um crime deste género acontece, o agressor é conhecido da vítima (36% das vezes é mesmo um familiar).

No entanto, se hoje em dia já podemos considerar de certa forma habitual vermos no grande ecrã retratados este tipo de temas, que desejávamos não existirem, nem sempre foi essa a realidade da sétima arte. E se por um lado a sexualidade foi um tema que andou de mãos dadas com o cinema desde o seu início (os primeiros filmes pornográficos remontam das mesmas datas dos primeiros filmes mudos) o mesmo não se verificou com outros temas. Passaram décadas até que temas que hoje consideramos extremamente banais surgissem perante o público.

Os primeiros filmes da história foram obra dos irmãos Lumiére, que em 1895 projetaram em sessões privadas os resultados da sua invenção, a primeira máquina de filmar da história. Rapidamente a moda pegou, e o que no início foi uma invenção para documentar a realidade, rapidamente se tornou num instrumento da arte e da ficção, ainda antes de 1890. No entanto, apenas em 1925 se deu o primeiro uso da profanidade no cinema. Foi no filme The Big Parade, de King Vodor, que a fala «Goddamn their souls!» criou revolta no público conservador que pensou estar a ver apenas mais um filme sobre a guerra. Apenas em 1933 foi projetada a primeira cena de sexo num filme não pornográfico, em Ecstasy e foi somente em 1947, em Fireworks, que surgiu o primeiro personagem abertamente gay. Stanley Kubrick, em 1955, revoltou-se contra as regras de censura impostas pelo código de produção de Hollywood, e, ilegalmente, mostrou o primeiro beijo interracial da história do cinema, em Killer Kiss, e curiosamente foi Hitchcock que, apesar de ter conseguido não mostrar nenhuma nudez na famosa cena do chuveiro em Psycho, no mesmo filme inovou: foi a primeira vez que o público ouviu no cinema o som de um autoclismo de uma sanita. Teve de se esperar até 1969 para em Women in Love se ter o primeiro olhar cinematográfico sobre o corpo masculino totalmente despido.

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E no meio destas ‘estreias’ todas, em que data será que um tema tão mais marcante e tabu do que todos os referidos se encontra, como é o caso da violação? A resposta vai depender do critério. É difícil de encontrar o primeiro exemplo de uma violação explícita no cinema, mas de maneira sugerida (sem aparecer totalmente explícita no ecrã), esse momento poderá ter acontecido em 1928, no filme The Wind, de Victor Sjöström. O filme é mudo (em 1928 ainda eram raros os filmes que tinham som) e conta a história de uma jovem mulher que se muda para casa do primo, onde causa tensão dentro do seu seio familiar e é lentamente levada à loucura.

Na produção de Sjöström, Lilian Gish (a atriz fetiche de D. W. Griffith) desempenha o papel principal, e na cena que marcou o filme na história do cinema, é abusada pela personagem de Montagu Love. Este filme mudo poderia ter entrada garantida na história apenas pelo facto de representar um ato tão horrendo, mas o que tornou este filme verdadeiramente genial (em específico, esta cena), foi a brilhante maneira como Sjöström abordou o tema: apercebendo-se de que um abuso sexual era algo forte de mais para se exibir explicitamente no ecrã, sendo assim, tornou o ato evidente e sem o mostrar. Na cena em questão, o vento (iconografia sempre presente no filme) transforma-se numa tempestade no exterior, e Love persegue Gish pela sala onde ambos se encontram, até que a consegue agarrar. Após isto, cortamos para uma das imagens mais fortes vistas no cinema até à data: a brilhante Lilian Gish encontra-se quebrada e vazia, debruçada sobre a mesa, com um cobertor a cobri-la, como se de um casulo se tratasse. Não foi o facto deste filme sugerir uma violação que o tornou num grande filme, mas o engenho e brilhantismo com que esta cena foi retratada no ecrã, que leva lágrimas aos olhos dos mais insensíveis movie goers.

O filme The Wind encontra-se completo na internet e podes encontrá-lo a baixo, com uma banda sonora gravada ao vivo por parte de uma banda de improviso de Newcastle (Helictite). Se quiseres fazer um fast forward até à cena chave do filme (o que não aconselhamos), salta para o marco da uma hora.

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