Serão os androides mais humanos do que nós? O que significa ser Humano?

por João Miguel Fernandes,    28 Novembro, 2017
Serão os androides mais humanos do que nós? O que significa ser Humano?
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A guerra entre máquinas (inteligência artificial) e o ser humano no cinema remonta há quase cem anos atrás. “Metropolis” (1927) de Fritz Lang aborda essa temática, embora de um ponto de vista social e estrutural e não levantando tantas questões morais como os filmes mais recentes (“Blade Runner”, “Her”, “A.I.”).

O novo “Blade Runner 2049” tem levantado várias questões relativas a este tópico. Serão os robôs/andróides mais humanos ou melhores que nós? Serão estas máquinas capazes de explorar o lado humano inerente que adoptaram de nós próprios?

A primeira questão que temos que explorar é “O que significa ser humano?” Ora, no filme “Blade Runner 2049”, ser humano significa ter uma alma própria, algo não fabricado. Do ponto de vista científico, podemos analisar objectivamente estas inferências como: 1 – alma fabricada artificialmente, possivelmente através da criação de memórias seleccionadas, sem espaço para expansão; 2 – alma inerente ao nascimento, com impulsos neurológicos livres e capacidade de decisão total. O ponto forte do filme de Denis Villeneuve é exactamente a desconstrução dessas duas assumpções, algo que o filme original não explora de forma tão aprofundada. A diferença entre ter uma alma artificial e uma alma natural é apenas a capacidade de decisão, de livre arbítrio, algo que, e nós bem sabemos (crianças das redes sociais), não é assim tão verdade. Toda a nossa liberdade é controlada e regulada por leis, embora possamos obviamente sair dessa barreira, assim como os andróides. O facto de, no universo de “Blade Runner”, existirem andróides que se revoltam contra os seus mestres só prova que a liberdade de decisões existe em ambas as almas, e que, desta forma, o resultado final, ou seja, a definição de “mais ou menos humano” é exactamente a mesma para andróides e seres humanos.

De um ponto de vista biológico, nós somos os criadores de nós próprios. Os seres humanos são gerados através da reprodução. Esta “fábrica natural” de reprodução não é diferente, simbolicamente, das empresas Tyrell e Wallace. A produção artificial dos andróides é, em tudo, igual à dos seres humanos, com uma ligeira diferença: os andróides são apenas criados por seres humanos, não sendo capazes de se reproduzir independentemente. É desta forma que “Blade Runner 2049” explora a liberdade total dos dois seres. Tal como Freysa refere no filme, se os andróides fossem capazes de se reproduzir então seriam os mestres deles próprios, algo que faz sentido de um ponto de vista biológico e análogo ao ser humano.

É o debate da alma e da liberdade das “espécies” que “Blade Runner 2049” explora de forma exímia. Esse debate tinha começado no filme original, tendo sido explorado mais através das memórias (Rachel e Deckard) e do prazo de validade (Roy). Roy explora os temas da mortalidade/imortalidade e da realização pessoal (capacidade de contribuirmos tanto mais para o mundo em que vivemos). Ninguém dúvida da existência de uma alma na personagem de Roy Batty, mas isso é constantemente questionado em K, o personagem de Ryan Gosling.

“Blade Runner 2049” não se fica por aqui. Se por um lado foi comparado com “Her”, o filme de 2013, de Spike Jonze, por outro há que referir que a relação amorosa entre K e Joy é muito mais profunda e significante do que a de Theodore e Catherine. A razão é simples: Se, para Theodore, a questão estava presa com a sua solidão e com a evolução da tecnologia, já para K, a sua relação significa ser real, existir no meio de pessoas que claramente são superiores a ti e te dizem isso constantemente (relação entre K e Joshi, por exemplo), algo que também é verdade no filme “Her”, mas simplesmente não é tão explorado. E este exemplo leva-nos para o segundo tópico: se os andróides são capazes de amar e sentir amor por parte de outro, o que os difere dos seres humanos?

Para K, a razão não é tanto a capacidade de amar, mas sim a noção de realidade. Será o seu amor real ou fabricado? K sabe perfeitamente que Joy é um ser artificial, tal como ele, mas tal como uma criança na sua primeira relação. Este descobre que há mais do que apenas felicidade no amor, há desilusão, frustração e a morte. Todos estes factores contribuem para que se possa comparar a um ser humano real. No fundo ele só quer ser um “menino de verdade”, assim como o Pinóquio.

Se, para K, amar não é uma fabricação artificial, então ele pode ser um ser humano, correcto? Errado. Para K, tornar-se um ser humano significa ser aceite socialmente como tal, e esse é o ponto que nos leva ao terceiro tópico: Ser ou não humano depende apenas da concepção social dessa mesma humanidade?

Como tudo na vida, a sociedade define regras e conceitos que, se não forem seguidos, poderão chocar com a maioria, e, como tal, serem postos de parte. Minorias, grupos alternativos ou suburbanos e rebeldes são exactamente isso, grupos que não aceitam as regras gerais da sociedade que governa os seus países, estados ou regiões. Os andróides são uma dessas minorias, claramente colocados num patamar inferior ao dos seres humanos, embora tenham, na prática, muito mais capacidades do que os próprios humanos (força, inteligência e capacidade de viverem mais tempo, se o criador permitir).

Em “Terminator 2”, James Cameron explora compulsivamente a relação entre a máquina (Arnold Schwarzenegger) e John Connor ( Edward Furlong). Essas manifestações humanas são criadas de forma progressiva e bem calculada, com o T-800 a imitar pequenas reacções e emoções humanas, até ao ponto em que no final diz a John Connor “I know now why you cry. But it’s something I can never do” Esta capacidade de uma máquina entender a razão pela qual os seres humanos sentem tristeza ou emoções dá-lhe também um carácter humano. Tal como K, o T-800 é capaz de entender emoções e replicá-las, mas imitar não é o mesmo que criar e é aí que chegamos à conclusão deste texto.

Os andróides, embora sejam capazes de sentir, tenham uma alma e sejam capazes de imitar, não são capazes de criar, e é esse detalhe que “Blade Runner 2049” explora categoricamente ao longo do filme: a capacidade de um andróide criar naturalmente outro andróide. Caso isso aconteça, então aí sim, os andróides serão “meninos de verdade”.

E é aqui que reside a grande diferença entre “Blade Runner 2049” e a maioria dos filmes que abordam estas temáticas. Se, para Roy Batty (Blade Runner), Theodore (Her) e T-800 (“Terminator 2”), o final lhes dá algum conforto humano, para K é exactamente o contrário. O seu maior desejo foi-lhe oferecido e teve que descobrir da pior forma que aquilo que mais queria era, no fundo, impossível, e que o que lhe restava era ajudar um outro a atingir esse objectivo e morrer sem esperança, no vazio das suas emoções artificiais.

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