Sinfonia de ruínas

Se pudéssemos descrever, por sons; através de palavras que não reconhecemos como podendo ter sido ditas por nós; numa língua que é já materialidade do trauma sobre o que vimos; por movimentos que produzem aproximações de imagens, com corpos que se sabem impossibilitados de expor e dar a ver o interior da ferida, o que encontraríamos naquele espaço-tempo que vai entre o reconhecimento e a dificuldade em agir, veríamos como C. C. (Crematística e Contraforça) é, sob a capa de uma instalação em permanente estado de decomposição, um poderoso manifesto em surdina física sobre o que fica depois da tragédia.
É-o, de facto, sobretudo pela generosidade com que convoca a presença do espetador, o envolve num processo de atenção ao detalhe, à surpresa da descoberta, sem brusquidão nem espanto superficial, numa preparação para o perigo da repetição. É-o, sobretudo, pelo desassombro com que se apresenta, deixando que os corpos-tempo dos intérpretes e autores, Vera Mantero, Henrique Furtado Vieira, Joana Manaças, Paulo Quedas e Teresa Silva, sirvam de hipóteses emaranhadas de soluções que não visam a convergência simplista, mas a complementaridade multiplicadora.

Espetáculo de busca e reconstrução, encerra-nos num intensíssimo cinzento, alto e opressor, feito a uma escala que nos faz concentrar o olhar nos interpretes, como se essa escuridão cegasse, num excesso revertido de luz. E o que mostram, fazem, procuram, intensifica um trabalho que pede meças à hesitação e se constrói na vontade de superação. E, ao mesmo tempo, não deixa de expor a sua belíssima fragilidade, patente na repetição, na hesitação e na dúvida que interliga o olhar, o movimento e as ideias e transformas as sequências que o constituem – longos andamentos de uma sinfonia de e em ruínas –, abrindo espaço para o indizível, o que há-de vir, que já estava em Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza (2006), opus magnífico de um século em início de vida, e resumo de um pensamento sobre a dança enquanto lugar de inquietante revelação dos paradoxos sociais e éticos.
Mas o que agora existe é mais amplo, porque eco de um desespero sobre as ferramentas e as linguagens a usar para enfrentar o tempo, o real, e o reverso influenciador e manipulador. Nesta nova criação, é como se as tensões ocupassem o centro para se exporem em toda a sua retórica e, por isso, coubesse à vontade comum de exploração de um outro espaço nascido dos espaços ocupados, a vontade de perguntar se podemos evitar a repetição e a distopia.

Sendo atentos ao que vai sucedendo em palco, percebemos como cada intérprete vai ganhando consciência da presença do coletivo, resistindo a um desaparecimento. Antes, prolonga-se – e nós com cada um deles – num gesto e compromisso que aponta para O susto do mundo (2021) na vontade, necessidade e dificuldade de convocação – numa certa legitimação da convocação se não puder ser partilhada – , mas, sobretudo, parece continuar Vamos sentir falta de tudo aquilo de que não precisamos (2009), agora de modo bastante menos solar, mais explícito, com uma raiva surda que vai crescendo a partir da descoberta e do espanto, da evidência e da ansiedade pela impossibilidade de reescrita.
Num espaço falsamente fechado – as cortinas passaram de um vivo grená para as cinzas claustrofóbicas que ainda estruturam as memórias dos espaços, dos edifícios, dos palcos –, das cabeças, de onde saíam ideias, chaves, areia, frases feitas em gesto e desaparecimento, descemos à bacia, cérebro intuitivo do corpo, esquivo, hirto, sonoro, central, divisivo. Os corpos desenham-se a partir e à volta desta morfologia óssea desconhecida, mas central, misteriosamente complexa, que aprendemos a desafiar, por sobrevivência e instintivo, e agora parece, na metáfora que distingue quem age e quem assiste, ser ponto ético nevrálgico. Os intérpretes organizam-se, por si e em atenta relação com o espaço através do outro – do corpo, do som, do movimento – para uma ideia de presença que seja mais atenta ao que os (nos) terá levado até ali. É um espetáculo-espaço-revelação, afinal.

Os corpos desta massa coletiva, espalhando-se por um terreno pré-existente, cheio de formas ocupadas e transformadas pela erosão do tempo, a destruição externa ou a apropriação sobrevivente, vão-se eles próprios metamorfoseando, descobrindo que lugar podem ocupar, de que forma podem ser ampliados, redefinidos, transferidos. Com eles, os gestos, as línguas, a comunidade. A interrupção que nos atira para fora de cena, serve de alerta para a confiança em demasiada na liderança, e oferece-se como poderoso antídoto contra o seguidismo. Daí este ser um espetáculo-alerta, cheio de vontade de agir, de interferir, de intervir, e de perguntar se sobreviveu mais alguém com que se possa continuar. É esse o epílogo de um espetáculo sobre a permanência, a persistência e a continuidade. Uma lição que redefine a acumulação de que se ocupa o título, singulares vocábulos para falar do presente.
C. C. (Crematística e Contraforça), de Vera Mantero & cúmplices, é uma coprodução Rumo do Fumo, com DDD – Festival Dias da Dança, Culturgest, Cineteatro Louletano, Teatro Académico de Gil Vicente. Estreado no Teatro Municipal do Porto (29 e 30 Abril 2025), com passagem pela Culturgest (Lisboa, 15 a 17 Maio), ainda pode ser visto no Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra, 30 Maio).