Sístole: uma exposição para sentir o pulsar da terra
Na galeria Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, em Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, Açores, está patente a exposição Sístole do fotógrafo Renato Cruz Santos e do artista sonoro Duarte Ferreira, que durante semanas calcorrearam o arquipélago dos Açores para captar imagens, pormenores, sonoridades.
Duarte Ferreira, natural do Funchal e sediado no Porto há 23 anos, e Renato Cruz Santos, natural das Caxinas, conheceram-se nos concertos da editora Lovers & Lollipops no Porto. O background das tecnologias audiovisuais de Duarte e a fotografia documental que Renato tem levado a cabo na sua terra natal fizeram com que os dois embarcassem numa colaboração de há alguns anos para cá.
A exposição Sístole, que agora se apresenta no seu formato alargado, teve a sua primeira versão em 2019, altura em que se cingia à ilha de S. Miguel. Numa viagem conjunta, mas não necessariamente umbilical, Duarte e Renato fizeram os seus percursos de uma forma interligada. “Numa ilha, sabes sempre onde é o mar, e sabes sempre onde é o ponto de partida”, diz-nos Duarte Ferreira numa conversa que tivemos a três. Com o mar como fundo e com a naturalidade com que se sabe “onde é o norte e o sul, olhas para o sol e sabes onde é o este e o oeste”, o diálogo entre os dois fluiu.
Nesta exposição, há um carácter também um pouco visceral, não no sentido de corpo, mas da terra. Fala-se também de um carácter quase alienígena, paisagens que se assemelham a ficção científica. A transposição para fotografia é, para Renato Cruz Santos, “uma tentativa de proteger algum mistério, não interessando apresentar um postal”. A forma para “enganar essa plasticidade verde foi a aplicação de sistemas de iluminação externa quando fotografava”. “A bananilha”, refere, “uma das flores mais comuns nas ilhas, ganha um aspecto alienígena quando lhe pomos uma luz vermelha, tendo um novo destaque e força. O ponto de vista celestial e alienígena da magnificação também permitiu alienar um pouco a imagem, fugir a isso de ser literal”.
O nome Sístole, o movimento cadenciado de um coração, é de certa forma também reproduzido nos sons captados por Duarte Ferreira. “A condição de registar qualquer som natural pode ser entendido como uma forma de estar a que associamos a terra a respirar. Ou seja, o vento como resultado das diferenças de pressão, o vento não tem som, o que existe é que estas camadas de ar ao bater na matéria, nos objectos. Tudo isso pode ser um respirar da terra. O batimento cardíaco está associado a todo esse movimento, as ondas, os próprios sismos, a actividade vulcânica toda ela associada a essa matéria de respirar, a terra a respirar. No coração, temos dois movimentos, o sístole e o diástole. O sístole tem inerente esta ideia de enviar para fora o sangue que foi retido no coração. Se estamos a registar o que está de fora da terra, é naturalmente o fluxo que vem cá para fora. De uma forma feliz, abordámos esta ideia de movimento que passam pelas veias, pelas cavidades, pelas grutas e lugares que normalmente não estão acessíveis ao olho ou ao ouvido do ser humano como sendo uma prova de vida do planeta”.
Na exposição nas caves da galeria Arquipélago, a humidade é quase de 100%. Por isso, há uma fotografia que foi impressa num papel “japonês, que é um papel muito fino com capacidade de agarrar bem a tinta e que, por ser muito fino, não ondula”. Ao longo do tempo, essa fotografia da gruta de Santana, em Santa Maria, vai ganhando características que se assemelham às ocorridas na própria natureza, “de consumição, tanto do ponto de vista meta, como do facto de o local onde estar inserida ter 100% de humidade”, diz-nos Renato. No final, haverá uma imagem diferente, em permanente mutação como o objecto retratado.
Fotógrafo e audiógrafo feitos geólogos e botânicos, com uma curiosidade imensa do que nos rodeia. Nos Açores e no seu périplo pelas ilhas, está também subjacente uma urgência de, nas palavras de Duarte Ferreira, “parar, ouvir, escutar, observar e sentir este pulsar na terra para esta problemática do que é a nossa pegada”. E quando Renato nos diz “sou só um gajo que descobre uma coisa nova e quero conhecer tudo” para começar depois a descrever processos de erosão, de transformação de rochas, de formação de estalactites e estalagmites percebemos que a captação de imagens e transformação das mesmas não foi um exercício automático ou espontâneo. A vontade de expandir para outros pontos da Macaronésia, “onde se encontrará coisas diferentes mas, provavelmente muitas afinidades”, parece-nos indiciar que este poderá ser um projecto para continuar. Por agora, as ilhas dos Açores “podem ser um espaço experimental para olharmos para a fragilidade disto tudo”, diz-nos Duarte.
O carácter da exposição não é, para Duarte, “deliberadamente interventivo. É uma chamada de atenção para o que existe à volta. Qual é o papel desta paisagem, seja esta sonora, seja esta visual?”. Quando há espécies invasoras, hotéis em ruínas convertidos em atrações turísticas, o cenário aproxima-se da distopia. E quando as próprias marés trazem todos os resíduos, lixos e objectos, também há uma reflexão a ser feita. Em Porto Pim, no Faial, “é doloroso ver a quantidade de plástico trazida pelas correntes, vinda sei lá de onde”. O caminhar natural na paisagem permitiu ouvir e observar, analisar pedras, perceber-lhes a origem, perceber de onde vieram as marés, os objectos que trouxeram. Acima de tudo, porquê.
Inserida no Festival Tremor 2023, a exposição Sístole estará patente no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas até 14 de Maio. Para que possamos também nós passar a ouvir e a ver o que é menos óbvio.
Sobre Renato Cruz Santos
Renato Cruz Santos é um artista multidisciplinar natural das Caxinas, Portugal. No seu trabalho, Cruz Santos explora maioritariamente as temáticas da memória, imaginário ficcionado e desconstrução do real. Grande parte do seu trabalho é produzido na sua terra natal onde tem vários projectos, de longo termo, em desenvolvimento.Trabalha activamente em várias vertentes de fotografia como jornalismo, música, teatro, dança, cinema – dividindo-se maioritariamente entre o Porto e Lisboa. Tem feito regularmente fotografias para discos e publicado em diversos livros da Galeria Municipal do Porto e Coletivos Pláka.
Site: www.renatocruzsantos.com
Instagram: renatocruzsantos + camembert.electrique
Facebook: renatocruzsantos
Sobre Duarte Ferreira
Duarte Ferreira nasceu no Funchal. É director de som, designer de som e artista sonoro. A sua actividade tem sido desenvolvida com maior expressão na área do som para cinema documental e de animação. É membro da equipa de audiovisual da unidade de Inovação Educativa da Universidade do Porto. É licenciado em Tecnologia da Comunicação Audiovisual pela ESMAE – Politécnico do Porto, em 2008. Vive e trabalha no Porto.