Sobre a actual transparência da tolice ou do politicamente imbecil
“A filosofia serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas.”
Gilles Deleuze, in «Nietzsche e a Filosofia
Longe vão os tempos em que o senso comum significava um conhecimento que ainda possuía uma candura ingénua. A necessidade de constância de uma cadência vital cuja vida prática, desde sempre, perpetuou, fez com que homens e mulheres anexassem ao suor do seu labor, a necessidade de um dispositivo psicológico autopacificador. Que ao menos a alma pudesse viver apaziguada dentro de um corpo repetidamente fustigado. Então, a busca por explicações religiosas para justificar existências tão dolorosas, sempre foi o meio mais rápido de tentar nivelar um solo demasiado estilhaçado para quem nascia com os pés descalços.
Estávamos perante uma fase histórica, em que os espíritos mais simples estavam limitados a receber a palavra bíblica como único alimento legítimo para a alma. Afinal, ensinavam-lhes a maldade do pecado e do conhecimento, e como poderiam ousar contrariar o único ser que lhes prometia uma paz eterna, depois de uma existência tão sofrida? Como ousar deixar de acreditar nas explicações bíblicas, que o mundo foi uma criação de Deus, e que a Terra é o centro do universo? Como substituir esta (vil) visão narcísica que me deram do meu sofrimento? O que justificaria afinal todos os prazeres dos quais fugi, sabendo que não era menos merecedor deles do que os outros, que tiveram acesso ao tempo livre e aos recursos que lhes permitiam serem fanfarrões? O senso comum pedia-lhes que não vissem que essa fanfarronice (afinal) existia à conta dos seus sofrimentos… Caso essa consciência emergisse, como iriam lidar com essa dor de cabeça crónica e insuportável? Onde iriam encontrar novas energias para manifestar a raiva — de valor absoluto, legítimo e divino — para ainda clamar por justiça? O senso comum apaziguava-lhes a alma, era um conhecimento que Marx bem definiu como um ópio, cuja natureza alienante tornava as suas vidas mais suportáveis.
Os grandes demagogos sempre se serviram e exploraram a fundo esta fragilidade do senso comum. Sabiam que esse conhecimento não era apenas a presença abstracta de uma série de crenças e falsas evidências, mas era um dispositivo psicológico que importava accionar politicamente, colocar em movimento. Nunca existiu outra maneira de continuar a dar as rédeas do mundo aos fanfarrões, senão pela moralização e politização desse dispositivo psicológico. A verdade é que não podemos culpar estas pessoas pelas injecções de veneno com que iam moldando as suas subjectividades. Davam-lhes a injustiça real escondida numa doce visão da justiça. Disseram-lhes: “o trabalho liberta” e “sofrer é uma virtude”. Conseguiram criar um insidioso conceito de justiça que em vez de pedir a vida total, pede o sacrifício individual.
Porém, este senso comum era ainda substancial, uma vez que engolia, ainda que de forma invertida e vilmente deturpado, um horizonte de sentido que tinha, ainda, um poder agregador. O senso era comum, uma vez que os indivíduos partilhavam a mesma mundividência. E nesta visão comum, quão bom seria que na imagem do crucificado não víssem apenas a necessidade de propagar a sua palavra, mas que desse origem ao milagre humano do surgimento de uma vontade férrea de continuar a sua justiça… Se víssemos na vontade de justiça de Jesus Cristo uma necessidade de revolução, onde a igreja viu, na resignação perante as injustiças, o seu mais rentável negócio.
Os grandes demagogos e os fascistas esfregavam as mãos porque, afinal, o terreno espiritual estava preparado para que eles pudessem dispor, sem muita resistência, das vidas das pessoas comuns. Souberam que ao cair no esquecimento a natureza activa de Jesus Cristo enquanto símbolo de justiça, bastava dar continuidade à mesma retórica moralizante e vingativa, desde sempre propagada. Apropriaram-se da moral do verdugo e individualizante para espalhar sangue e terror. O cristão esquece-se que as chagas de Cristo ainda estão abertas, e não param de sangrar, pela forma vil como justificaram a sua morte. A inocência da nossa alma foi morta para nela colocarem o peso de uma dívida eterna. É o próprio cristão que não para de matar Jesus Cristo sempre que culpa o mais frágil e está pronto a linchá-lo socialmente e a crucificá-lo, sem piedade. O sentido do perdão tornou-se, apenas, uma forma cobarde de legitimar o poder daqueles que com ele perpetuam a maldade. Desde o trágico esquecimento do sentido de justiça de que Jesus Cristo é símbolo, vingam-se, precisamente, na parte da sociedade que Ele tentou salvar. Cristo não nos ensinou apenas a orar ao Pai, com o seu exemplo ético, a sua mais importante revelação foi mostrar-nos onde está, na concretude da sociedade, a verdadeira fraqueza.
Numa sociedade que perdeu a comunidade e também o senso, a mundividência deu lugar ao vazio. O novo fascista trabalha agora nesse vazio, explora-o até ao limite. A Grande Mentira dá lugar à proliferação de toda a mentira. Da Grande Mentira Religiosa temos agora a Grande Mentira Liberal, que dela herdou o cobarde veneno da moral vingativa, culpabilizante e individualizante. Agora, com a sua retórica degenerada, o novo fascista cria uma mentira que possa apontar quais são os alvos: as minorias a perseguir, a excluir, a violentar. O indivíduo comum ainda se encapsula na mesma moral, culpabiliza-se o que não está a produzir ou a consumir. Se não trabalhares, mas tiveres dinheiro, estás perdoado; se não trabalhares nem tiveres dinheiro, estás condenado. Ninguém desconfia do ócio do primeiro; crucifica-se, de imediato, o ócio do segundo. O primeiro joga golfe; o segundo joga sueca. O primeiro é fanfarrão; o segundo é um malandro. Como desmascarar facilmente um fascista? É fácil. Em cima do palanque, persegue o segundo, enquanto nos bastidores faz orgias com o primeiro.
Se antigamente a tolice escondia-se numa forma de ver o mundo, incutida nas pessoas simples cuja inocência psicológica era facilmente explorada; hoje, a tolice é apenas banal e transparente. Deixou de ser um pensamento revelador de um atraso civilizacional, um ressentimento religioso de potencial comunitário, para se tornar uma indústria do ressentimento individual. Se o primeiro produzia conceitos balsâmicos pelo seu ódio dissimulado à inocência da natureza; o segundo, é um ressentimento que se bebe nas tabernas, e o ódio vomita-se no parlamento, na TV e nas ruas, desavergonhadamente. Enquanto cambaleiam com o ódio a pingar-lhes dos beiços, lutam pela liberdade de o expressar e contra o politicamente correcto, mas, bem sabemos, que dada a sua embriaguez evidente, tudo isso não passa de uma apologia do politicamente imbecil.
Crónica de Cláudio Azevedo
O Cláudio é Professor de Filosofia e Crítico de Cinema no blogue “Cinema Sétima Arte”