Sobre fazer nada

por Paulo Rodrigues Ferreira,    30 Dezembro, 2022
 Sobre fazer nada
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Num breve ensaio intitulado “On Doing Nothing”, o britânico J. B. Priestley (1894-1984) contraria uma ideia que diz ser “prevalente na América”: a de que a preguiça é um pecado capital. Referindo que todos os males do mundo são cometidos por gente que está sempre desperta, produzindo alguma coisa, disponível para o serviço, Priestley dá o exemplo da Primeira Guerra Mundial como uma consequência da obsessão ocidental pela acção: se em Julho de 1914, imperadores, reis, arquiduques, generais e jornalistas tivessem desfrutado do bom tempo e dos pequenos prazeres da vida, em vez de terem seguido a “doutrina da vida extenuante”, teria havido menos violência e os povos seriam mais felizes. Porém, afirma o autor, as elites políticas de então acreditavam que era preciso fazer alguma coisa, que não havia tempo a perder, e assim se disseminou a destruição pela Europa. 

Uma conclusão a retirar do texto citado é que a obsessão com a produtividade e com o dinheiro, com esta disposição para estar sempre pronto para a labuta, gera ressentimento e ansiedade e torna os homens agressivos. Outra conclusão é que o ócio é fundamental para a criação de trabalhos artísticos como os que deram à estampa autores como Walt Whitman ou William Wordsworth. Sem descanso e prazer, não há génio, apenas uma mediocridade esforçada que se consubstancia em mentalidades tacanhas. Então, em vez de passarmos os dias dilacerando o espírito com um estilo de vida que nos permite sonhar com pouco mais do que sobreviver, melhor estaríamos se nos banhássemos ao sol, se nos dedicássemos a prazeres simples como caminhar na praia de limonada ou licor na mão, namorar em restaurantes e no cinema, ler romances e discutir filosofias com amigos desprovidos de interesses intelectuais. 

Porém, esta visão de nós mesmos estirados numa cama de rede, indefinidamente despreocupados da realidade, parece absurda, surreal. Presos a um culto capitalista castigador, precisamos de estar permanentemente ligados, de achar que é necessário cumprir o horário, produzir mais e melhor do que os outros, poupar para a reforma e para os sete dias anuais de turismo. Quando temos duas semanas de férias, descansamos durante os primeiros três dias, consumidos pela culpa advinda da desocupação, e no quarto, não obstante as olheiras e o peso no corpo causado por meses de serviço de jumento, já estamos a mergulhar em renovados planos de sucesso, em novos trabalhos extra que nos permitirão aditar linhas ao curriculum vitae e pagar uma continha qualquer. Claro que é preciso compreender que a ideia de fazer nada é em si mesma uma utopia. Afundadas em encargos, em dívidas ao banco, fustigadas pela especulação imobiliária e por crises financeiras crónicas de que não são responsáveis, às vezes com filhos para sustentar, as pessoas não são privilegiadas o suficiente para decidir ficar deitadas na cama e proclamar: “I would prefer not to.”  

Desde tenra idade que nos ensinam a estar gratos pelo que temos, mesmo que tal seja uma côdea que não chega a consolar o estômago sofredor e um pedregulho para acartar diariamente até ao cume da montanha. Se o que temos é exaustão, contam-nos, a solução é celebrá-la carregando-a de horas de trabalho. Tratamos a existência como se esta se resumisse a uma segurançazinha trazida pela execução de tarefas mecanizadas, pela exposição a um ofício mal remunerado que paga a água, a luz, o carro usado, o telefone e, com sorte, um fim de semana de férias em Agosto no Algarve. Mas não só é possível imaginar a vida liberta de obrigações e torturas continuadas, como é essa imaginação, que alguns poderão chamar de fé, que nos confere energia, apetite para continuar a servir de rato de laboratório ou número estatístico. É a crença que amanhã será melhor que nos reconduz ao chuveiro às sete da manhã e nos transporta ao escritório às oito e meia e nos impele a redigir relatórios e a cumprir compromissos. O trabalho nunca acaba, nem o sonho de acabar com o trabalho. Daqui surge uma espécie de beleza do ser, que vive enredada entre pressões sociais, responsabilidades e pulsões de fugir, de ser nada, de pousar a pasta e dizer que hoje e nos próximos dias não mexeremos um dedo, de passar dias sem conta a fazer nenhum, até sermos acometidos pelo desejo de criar algo a que chamar arte.

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