Sobre o sentido da vida em tempos duros
Ontem, enquanto lia uma história de embalar à minha filha de cinco anos, perguntei-lhe qual era o sentido da vida. Ela revelou-me que o sentido da vida era o amor. Com seu meigo tom de voz, acrescentou que a mamã, o papá e o seu pequeno irmão James eram tudo o que lhe importava. Ao contemplar um passado marcado por agruras e batalhas sem fim, questiono-me se tenho sido doce e compassivo como a minha filha. Sonhos por realizar e utópicas expectativas fizeram-me sofrer e ser demasiado duro comigo mesmo e com os outros. Parafraseando “Lisbon Revisited” (1923), poema de Fernando Pessoa, gastei décadas desejando cinquenta coisas ao mesmo tempo, ansiando uma angústia de fome de carne. Sonhei imenso e, seguindo a mesma linha do poeta, estou agora cansado de sonhar mas não cansado de sonhos.
A partir da leitura de autores como Epicuro ou Séneca, aprendemos que a obsessão com o prazer e com o intrinsecamente humano ensejo de adquirir possessões materiais nos impedem de viver uma vida boa. Epicuristas e estoicos coincidem na ideia de que o homem que vislumbra felicidade na moderação e na quietude vive melhor, e consequente mais feliz, do que o homem que está em permanente conflito consigo mesmo, procurando objectos e efémeras relações amorosas que nunca lhe trarão real satisfação. Já um budista afirmaria que os desejos são a raiz do sofrimento, e que apenas seremos felizes quando os superarmos. O leitor que não esteja familiarizado com o Budismo poderá perguntar: como é possível parar de desejar o que quer que seja, se vivemos para o futuro, motivados precisamente pela vontade de ter e de ser mais? A solução budista para nos livrar do sofrimento consiste num conjunto de práticas aparentemente simples. Antes de mais, devemos escolher pensamentos correctos, ou melhor, pensamentos positivos, e tentar praticar o bem. Isto significa que nos devemos abster de cultivar maus hábitos, tais como mentir, trair e caluniar terceiros. A prática regular de meditação é também crucial para nos concentrarmos no momento presente, que é onde reside a felicidade.
Esta breve incursão às origens do sofrimento traz alguma luz às crises existenciais que me costumavam afligir. Rememorando aflições antigas, acomete-me uma sensação de banalidade. Embaraça-me, por exemplo, pensar sobre os rios de lágrimas vertidos à custa de finais de namoro. Desnecessário é dizer que, à semelhança de tantos outros, passei por privações económicas e fracassos que me pareceram devastadores. Não há dúvida que o dinheiro, ou a sua falta, me obrigou a atravessar períodos de volatilidade emocional. O dinheiro é importante, e tenho contas para pagar e filhos para criar. Porém, ainda não fui escravizado pela obsessão de sacrificar certa tranquilidade. O dinheiro existe para me ajudar a perseguir uma vida decente e a adquirir bens que me trarão contentamento. Não tenho nada contra ser milionário. Pelo contrário, julgo que a todas as pessoas deveria ser permitido ter uma existência que vá além da mera sobrevivência. Ainda assim, passo bem sem noites de insónia e de rezas para que o divino me traga o almejado ouro. E ao olhar para o passado, vejo que as posições de trabalho e as mulheres que quis atrair para a minha vida se transformaram em grãos de areia cujo significado se dissolveu na eterna noite do esquecimento.
Em Walden, livro que releio de tempos a tempos, Thoreau escreve algo essencial sobre a necessidade de levar uma vida modesta, livre de supérfluas complicações: “Let your affairs be as two or three, and not a hundred or a thousand; instead of a million count half a dozen, and keep your accounts on your thumbnail.” Seguindo esta linha de raciocínio, poderia argumentar que a simplicidade e a moderação são fundamentais para sobreviver numa sociedade que nos força a ser produtivos e a dar mais do que aquilo que conseguimos. A realidade exterior nunca nos oferecerá as condições ideais para abraçarmos um estilo de vida definido pelos budistas como o caminho do meio, o caminho que não se inclina para extremos. Por vezes, tenho de lembrar-me de que esse caminho existe dentro de mim mesmo, que não é nos outros, no trabalho ou até no dinheiro que encontrarei serenidade. Por exemplo, confrontado com uma carta de rejeição que originou ataques de pânico, fecho os olhos tentando rememorar imagens prazerosas e palavras que me possam acalmar a alma. Recordo tempos de felicidade. Revisito tardes passadas a caminhar pelas ruas de Manhattan imbuído de tolos sonhos de glória e de fama. Mergulho nas memórias de tempos que já se foram e sorrio com a visualização de um jovem fascinado pela literatura. Mas a lembrança de tempos idos apenas agrava os meus tormentos. Não rebuço satisfação em remexer nesse passado. Nada trará de volta a excitação de beijar uma namorada pela primeira vez. Relembrar a manhã passada a ler um romance à beira-mar não alivia a angústia causada pela impossibilidade de me dedicar à mesma actividade no presente momento. Então, todos os esforços de esquecer uma carta de rejeição somente me tornam mais melancólico. Talvez Lao Tzu esteja certo ao afirmar que o sábio age fazendo nada.
Sempre disponível para me resgatar de uma mente auto-destrutiva, a minha filha não precisa de muito para me animar. Diz amo-te, amo-te sempre, e o meu coração derrete, os planetas e as estrelas brilham. Um dia, vendo esta cara triste, ela disse-me que os amigos deveriam ser felizes, que ela era minha amiga e me queria abraçar. Foi nesse momento que entendi que, não obstante a sua inevitável crueldade, a dor é temporária e ridícula na presença do amor. Nada dura para sempre. Nem as vitórias, nem as derrotas. Daqui a cinquenta ou sessenta anos, nada disto importará. A grande lição que a minha pequena sereia me deu foi a de que o amor contradiz as minhas certezas e reencaminha-me para a paz, para o conforto de um abraço de uma menina de cinco anos. Estamos condenados a morrer, mas o amor é para sempre.