Sobre ruído, criptas e fantasmas trangeracionais

por Comunidade Cultura e Arte,    23 Outubro, 2022
Sobre ruído, criptas e fantasmas trangeracionais
My Life is a gunshot (still)

Esta crónica é da autoria de Fábio Mateus e no âmbito do festival Sonica Ekrano – Cinema Documental e as Músicas das Margens, a acontecer entre os dias 21 e 29 de Outubro, no Barreiro.

Dizem os críticos que My Life is a Gunshot é um documentário sobre a vida e obra de Joke Lanz. Um filme ruidoso, sobre um artista igualmente barulhento, assombrado pelo fantasma de um pai suicida. 

A imprensa anuncia um filme sobre: 

Pais. 

Filhos traumatizados. 

E filhos traumatizados, que se tornam pais (‘Ein Film über Väter, Söhne und darüber, was passiert, wenn traumatisierte Söhne zu Vätern werden).

Sim.

Existe um fantasma no filme.

Um fantasma transgeracional de confronto com a perda, com a ausência, com a falha, com o barulho, com o ruído. 

Mas o filme mostra muito mais que isso. 

Ele mostra algo da própria essência da natureza humana. 

No filme, os temas da angústia transgeracional surgem apenas como um pano de fundo, como uma textura, sobre a qual se projeta, e se pode tornar manifesta a natureza humana.

O filme apresenta-se numa cadência rítmica sincopada. 

Inconstante. 

Por vezes, mostra-se rápido, galopante, a surgir em catadupa, extasiante, desorganizado, angustiante, alucinante, brincalhão, entusiasmante, excitante, frio, distante, metálico, amorfo, violento, paterno, descuidado, industrial, morto, sem vida; 

Noutras: 

Mostra-se calmo, sereno, organizado, tranquilo, aborrecido, brincalhão, provocante, materno, infantil, lento, ternurento, aconchegante, corajoso, íntimo, próximo, caloroso, animado, alegre, acompanhado, em movimento, contentor. 

A narrativa vai surgindo em verdadeira associação livre, no sentido freudiano do termo. E com isso, ganhamos uma via regea para o inconsciente

Para o inconsciente; leia-se: 

Com o seu desprezo pela lógica aristotélica, marcado pela inexistência de negação, de tempo, de contradição e animado pelas dinâmicas e pelo fluxo da condensação, do deslocamento e da simbolização. 

O filme: em associação livre. 

O espectador: em atenção flutuante. 

E o que se capta na atenção flutuante? 

A contra-transferência[1].

Um acesso à função de rêverie[2]. A possibilidade de captação e de inscrição do real, no simbólico, e no imaginário. O que se capta, é a conversão da imagem numa tela onírica animada pelas dinâmicas do afeto que: 

com o seu desejo de se tornar substância pela via da representação;

se misturam e se envolvem na construção de uma narrativa afetiva. 

Em My Life is a Gunshot, — como na vida e arte de Joke Lanz — evocam-se sensações. 

Sensações: contra-transferenciais. 

Sugerem-se imagens, evoca-se um cenário, propõe-se um dilema, enuncia-se um mito fundador. 

O que o espectador sente (?): 

é uma aproximação, uma cópia, uma réplica, uma reedição, daquilo que sentiu o realizador quando decidiu captar a história de Joke Lanz. Através do rodopio de relações transfero-contratransferenciais, enuncia-se uma provocação…

a proposta de confronto do espectador consigo mesmo, 

na presença, 

do peso da história e da memória de Joke Lanz. 

Dizem os críticos: 

Para a maioria, a sua música é apenas um ruído agonizante/ Seine Musik ist für die Meisten ohnehin nur qualvoller Lärm’.

Sim. 

O confronto com a loucura: 

Com a confusão, com a desorganização, com a fragmentação, com a morte, com a sexualidade, com o desejo, com o amor, com o ódio, com o desespero, com o putrefato, com o corpo, com o ruído, com o barulho, com a inconstância, com o desprazer, com o desconforto, com a surpresa, com o desvio, com o extravio, com o grito, com o inaudível, com o inominável, com o incaracterizável, com o abominável, com o indomável, com o tenebroso, com os elementos beta bionianos… 

Não é para qualquer um. 

Quantos de nós

conseguem suportar

confronto consigo mesmos 

perante a morte de um pai suicida?  

Talvez a resposta para o dilema com a qual nos confronta a esfinge esteja presente no próprio nome de Joke Lanz. 

Joke: do latim iocus, provavelmente com origem no século XVI – ‘uma brincadeira, um gesto, um jogo de palavras para suscitar o riso’. Do proto-italico: joko-, do proto-indo-europeu: iok-o- ‘palavra, enunciado’. Da raiz: yek — ‘falar, dizer ou expressar algo’. Originalmente coloquial ou da gíria, com o significado ‘algo não real, ou sem propósito, alguém ou algo que não é levado a sério’.


[1] A contratransferência – gegenübertragung – foi inicialmente conceptualizada por Freud (1895, 1909, 1910, 1912) essencialmente como a resposta emocional do terapeuta à transferência do paciente. Isto é, uma resposta inconsciente do terapeuta à transferência (do paciente) de padrões relacionais e conteúdos psíquicos. Se inicialmente considerámos os processos transferenciais e contratransferenciais enquanto fenómenos específicos do contexto clínico, hoje, pensamos que a transferência e contratransferência são fenómenos psíquicos universais. Melanie Klein, através da introdução dos conceitos de identificação projectiva e de clivagem foi capaz de demonstrar quais os mecanismos mentais que oferecem suporte às noções de transferência e contratransferência. Assim, hoje consideramos que aquilo que está a ser captado do ponto de vista emocional — neste caso pelo espectador — é frequentemente aquilo que foi vivido pelo emissor, de modo que, tanto o que está a ser vivido emocionalmente, como as defesas face à emergência da emoção correspondem ao que conceptualizamos enquanto contratransferência.    

[2] Conceito de Wilfred Bion, inspirado na noção freudiana de tagtraum, corresponde à função de sonho diurno, ou de sonho acordado, isto é, à livre circulação da fantasia no imaginário na vida vígil. Nesta seção do texto entendemos que é através da contratransferência que o espectador consegue imaginar cenários associados às emoções que se vão gerando através da visualização do documentário. 

My Life is a Gunshot, de Marcel Derek Ramsay, estará em exibição no Biblioteca Municipal do Barreiro no dia 24 de Outubro, às 21h00, no âmbito do festival Sonica Ekrano – Cinema Documental e as Músicas das Margens,a acontecer entre os dias 21 e 29 de Outubro, no Barreiro.

Texto de Fábio Mateus, psicólogo, presidente da Associação de Psicologia e Desenvolvimento Comunitário.

Se estiveres numa situação de risco podes ligar para várias linhas de apoio disponíveis aqui. “As linhas de apoio telefónico, na sua generalidade garantem o anonimato e oferecem a possibilidade de falar sobre as questões relacionadas com o suicídio com voluntários sem a pressão de uma conversa face-a-face. Falar sobre o problema ou compartilhar a dor com outra pessoa que se interessa pode ser uma grande ajuda em situações de crise.”  

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