Sobre viver com medo
Circula pela internet um vídeo de um rapaz que, a caminhar pela zona do Martim Moniz, em Lisboa, anuncia que “Portugal está a ser colonizado pelo terceiro mundo” — curiosamente, algo que podia ter sido dito pelas pessoas que viviam nos territórios colonizados por embarcações lusitanas. O vídeo tem feito furor entre os cada vez mais desenvergonhados nacionalistas e racistas cá do burgo, órfãos de uma voz que os representasse em toda a linha até à chegada da extrema-direita ao parlamento. Não é por acaso que, no Instagram, o comentário principal do vídeo em questão é desse mesmo partido com aspirações fascistas, que deixa uma mensagem de apoio: “ainda vamos a tempo de ter um Portugal de Portugueses”. O que quer que isto signifique.
“Hoje, eles procuram, nos países que exploraram durante anos as suas matérias-primas e corpos, um refúgio para a estabilidade que não encontram em casa. Nós não permitimos isto: a travessia só é permitida de cá para lá, nunca de lá para cá. Nós representamos a civilização; eles representam o perigo. E o perigo gera medo.”
Acho que é evidente para todos nós que este tipo de conteúdo, reprodutor da mitológica “teoria da grande substituição”, tem explodido nos últimos tempos. Narrativas de uma “invasão estrangeira” multiplicam-se nas redes sociais, vídeos circulam no WhatsApp, criam-se bodes expiatórios como os condutores da Uber que chegam de fora do país para criar novas e antigas narrativas racistas. A única violência denunciada, no entanto, é aquela que vem do “estrangeiro”, mas de um estrangeiro muito particular, não é da Alemanha ou de Inglaterra, mas sim do tal “terceiro mundo” de que falam no vídeo. Crimes como a violência doméstica não chocam, não produzem vídeos virais, apesar de serem o tipo de crime mais denunciado do país — e o que mais mata. Em paralelo, os crimes de ódio contra as pessoas visadas nestes vídeos multiplicam-se em Portugal e por todo o Ocidente — veja-se, por exemplo, o recente caso do casal brasileiro que foi agredido violentamente por dez pessoas em Vila Nova de Gaia.
“A premissa é sempre a mesma: o mundo é constituído por “nós” e por “eles”. Nós podemos ir para os territórios d’eles e proclamar a sua descoberta, nós podemos pilhar estes territórios, nós podemos matar e nós podemos colonizar. Não só podemos tudo isto, como isto faz de nós corajosos, valentes e destemidos. É esta grande epopeia que define a tal Portugalidade, que nos ensinam os livros de história e que define a nossa identidade nacional.”
Perante a construção destes mitos racistas, a direita fascista — vá, com tiques fascistas, para não ofender o leitor fasc… — simplifica as soluções: fechar fronteiras, retirar os apoios do Estado a imigrantes (mas só a um tipo de imigrantes!), valorizar a “Portugalidade”, o que quer que isso signifique. O ódio é evidente neste tipo de narrativa, claro. Mas vejo, acima de tudo, muito medo. O rapaz que caminha pelas ruas de Lisboa é o exemplo perfeito de alguém que vive assoberbado pelo medo. Vive com medo de uma ideia que lhe foi passada desde que nasceu, que foi passada a todos nós. A premissa é sempre a mesma: o mundo é constituído por “nós” e por “eles”. Nós podemos ir para os territórios d’eles e proclamar a sua descoberta, nós podemos pilhar estes territórios, nós podemos matar e nós podemos colonizar. Não só podemos tudo isto, como isto faz de nós corajosos, valentes e destemidos. É esta grande epopeia que define a tal Portugalidade, que nos ensinam os livros de história e que define a nossa identidade nacional. Devemos relembrar-nos, contudo, que neste grande epopeia nós construímos um sistema económico que dependia da exploração dos territórios onde eles viviam. Hoje, eles procuram, nos países que exploraram durante anos as suas matérias-primas e corpos, um refúgio para a estabilidade que não encontram em casa. Nós não permitimos isto: a travessia só é permitida de cá para lá, nunca de lá para cá. Nós representamos a civilização; eles representam o perigo. E o perigo gera medo.
A extrema-direita é a face do medo e do ódio, uma vez que o ódio prolifera num espaço onde há medo. Enquanto acusam os movimentos progressistas de ser hipersensíveis — plasmado no famoso “já na se pode dizer nada hoje em dia” — protagonizam momentos ridículos, gritam aos altos berros no meio da rua que “estamos a ser invadidos” enquanto uma série de pessoas olha para aquele rapaz com uma cara enigmática e confusa (talvez estejam a pensar: “este tipo não trabalha?”). A extrema-direita tem medo porque assiste à morte da fantasia colonial que ilumina os seus sonhos, à decapitação de ideias imperialistas que alimentam a sua mundividência. Os mitos salazaristas e de tantas outras épocas vão sendo desconstruídos por ativistas, políticas, académicos e pela sociedade civil em geral. O luso-tropicalismo perde força e, por isso, assistimos a um fenómeno de nostalgia, a uma saudade de uma grandeza histórica inventada nos livros dos antigos regimes. A invenção teórica que nos divide entre “nós” e “eles” é progressivamente aniquilada e os rapazes das redes sociais vestem o seu melhor fato e passeiam no Martim Moniz numa manhã de sol para garantir um lugar no céu dos fascistas.
“Os mitos salazaristas e de tantas outras épocas vão sendo desconstruídos por ativistas, políticas, académicos e pela sociedade civil em geral. O luso-tropicalismo perde força e, por isso, assistimos a um fenómeno de nostalgia, a uma saudade de uma grandeza histórica inventada nos livros dos antigos regimes.”
Apesar de estarmos a assistir à morte dos mitos coloniais, não nos devemos enganar nem precipitar. Ainda há muito por fazer — os pressupostos e ideais com que olhamos para o mundo continuam a ser moldados por muitos destes mitos. A cabeça do rei das nossas análises ainda não foi cortada. Por um lado, o apoio explícito de um partido com assento parlamentar a este tipo de vídeos amadores, que promovem um racismo e xenofobia muito mais aberto do que aquele que já é proferido nos bancos da Assembleia, é motivo para ficarmos alertas para a banalização deste discurso e denunciá-la. Não falar sobre o assunto não é a solução.
Por outro lado, devemos exigir mais dos partidos ditos progressistas, que frequentemente partilham alguns destes mitos. Veja-se, por exemplo, o contra-ataque à xenofobia através da ideia de que “os imigrantes são bons para a nossa economia”, implicitamente afirmando que as vidas das pessoas — d’eles — só são dignas se produzirem riqueza para nós. A xenofobia deve ser atacada por si própria, por tudo o que representa, e não através de argumentos económicos e de justificações que agradem a quem discrimina. Apenas um grande esforço coletivo, de cientistas, educadores e ativistas de todas as áreas de conhecimento, pode consolidar uma nova forma de nos vermos a nós próprios e aos outros, a desconstrução total da ideia de que um humano pode valer mais do que outro. O rapaz do vídeo diz que se sente um “cheiro imundo” nas ruas de Lisboa, mas o que se sente é o grande cheiro a medo que vem das suas entranhas. Um medo da destruição ao vivo dos mitos coloniais em que ele baseia a sua identidade.