Sobreviver já não chega
A sobrevivência sempre foi a derradeira missão de qualquer ser vivo. Aguentar o máximo de tempo possível neste planeta, de preferência sem passar grandes necessidades. É este o programa que corre no nosso ADN e nos liga aos restantes animais e plantas. Talvez seja por isto mesmo que, durante séculos, sobreviver acabava por ser um sinónimo de viver.
Esta transição é bastante recente. Ao falar com pessoas mais antigas, o recado é quase sempre o mesmo. Dizem-me para arranjar um trabalho que pague a tempo e horas, que tenha uma casa grande e que acumule o máximo de património possível. Colocam as fichas todas no conforto de uma vida abastada, pelo menos no que toca ao material. Deixam de fora da equação incógnitas como a felicidade, a espiritualidade e a paz. Será que chega apenas um enorme tecto, imensa comida na mesa e roupa lavada de marca?
Logicamente, estas não são palavras de ingratidão para aqueles que estão cá há mais tempo. Muito pelo contrário. A sabedoria que veiculam é fruto das suas vivências, das dificuldades que sentiram e da educação que receberam. Quando existem carências alimentares, é natural que a comida se torne uma prioridade. Quando entra chuva pelo telhado, é óbvio que o tecto será a nossa preocupação número um. Mas assim que conseguimos salvaguardar estas bases, será que faz sentido continuarmos obcecadamente preocupados com as mesmas?
Sinto que existe um desfasamento entre a educação que recebemos e a realidade com que nos deparamos. Tenho 31 anos e, como qualquer pessoa da minha geração, cresci a ouvir que o importante era tirar um curso, de preferência com bastante empregabilidade e que pagasse bem. Nunca ninguém nos disse para irmos atrás do que nos faz feliz. O caminho da felicidade e da realização pessoal era uma espécie de jornada do herói, cheia de tremendos riscos e peripécias quase insuperáveis. Obviamente que tudo se tratava de amor. Pais e avós tentam sempre fazer o melhor que podem e sabem, o que não quer dizer que seja o mais indicado.
Quiseram que fizéssemos o que alguns deles não tinham conseguido fazer. Ficaram orgulhosos por termos ascendido na pirâmide social, vingando-se dos tempos em que apenas 3% dos portugueses tinham uma licenciatura. O “problema” é que agora qualquer um tem um curso superior e as regras do jogo voltaram a mudar. Muitos vivem na frustração de não conseguir dar uso ao seu vasto currículo. Outros singraram nas suas carreiras, ganham bem, têm carro da empresa e um seguro de saúde que os protege de tudo, menos deles próprios. Chegaram ao cume da montanha e a paisagem não era o que esperavam. Sobrevivem à vontade, mas não se sentem verdadeiramente vivos.
Citando o músico Slow J, uma boa vida já não chega, precisamos construir uma vida boa. As conquistas materiais ocupam, embriagam e toldam a lucidez. Obviamente que são importantes e parte desta experiência terrena. No entanto, não é aí que reside a plenitude. Precisamos transcender. Não obrigatoriamente numa vertente religiosa, mas sim espiritual. Carregamos âncoras que nos impedem de voar, que nos prendem ao medo de não conseguirmos sobreviver. Vivemos depressa. Escravos de uma realidade da qual também somos cúmplices. É tempo de admitirmos que aquilo que nos preenche pode não coincidir com o que nos rodeia.
Avalia se todos os receios que sentes são verdadeiramente teus ou se apenas os herdaste. Pode ser uma viagem dolorosa, mas necessária. O nosso propósito não se resume à busca pelo conforto excessivo e à tantas vezes infundada luta pela sobrevivência. Há mais. Muito mais.
A vida não é sobre existir. A vida é sobre viver.