Somos todos um clítoris
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Viver não é fácil, todos sabemos isso. Quer dizer, viver em si não é propriamente difícil, basta respirar, comer quando temos fome, beber quando temos sede, dormir quando estamos cansados e é isso. É a vida que é difícil. E só porque decidimos que é assim que tem de ser, com esta coisa que criámos chamada civilização ou lá o que é. Basta ver que, apesar de existirmos no melhor período desde que o primeiro bicharoco quis ver como é que era isso de viver fora de água, conseguimos arranjar sempre uma maneira qualquer de dificultar a vida, principalmente a nossa. Temos hoje o que nenhuma geração teve antes de nós, como tecnologia avançada, uma esperança média de vida alargada ou Guinness em quase todos os supermercados, mas mesmo assim escolhemos andar irritados com coisas que, na verdade, não têm qualquer relevância para a nossa vida. Temos tanto que é preciso pouco para nos chatearmos. Esta semana foi um exemplo disso mesmo. Vamos ver a quantidade de coisas irrelevantes que causaram celeuma:
– Anuncio da Gillette que ofendeu homens. Sim, a Gillette fez um anúncio em que retrata alguns comportamentos errados que alguns homens têm, como assédio sexual ou bullying, incentivando outros homens a intervirem e a educarem as suas crias a não fazerem o mesmo. Como é óbvio, isto ofendeu homens. Porque, de repente, mostrar comportamentos errados é incentivar o ódio aos homens. Mas onde é que está ali ódio aos homens? Só se for no preço da Gillette Fusion Proglide. Sim, aquilo é para fazer a barba, não é uma quarta de polén, senhores executivos! Mas sim, houve uma quantidade enorme de tipos que decidiu ficar irritada com este anúncio. E nem estou a falar de indivíduos exasperados por verem mais uma marca a usar movimentos sociais para vender um produto (Bill Hicks, o profeta, mais uma vez), estou mesmo a falar de gajos que ficaram irritados porque o anúncio lhes feriu a masculinidade. Gajos como o Piers Morgan, por exemplo. Um tipo rico, famoso e com uma vida bem mais simples do que a vossa e que decidiu gastar o seu tempo a ofender-se com isto. Tivesse ele (eles) a preocupação de fazer fogo no inverno com dois paus ou escapar da peste negra e de certeza que aquilo que uma marca de lâminas de barbear diz não o irritaria tanto.
– Produtores de “Family Guy” dizem que vão deixar de fazer piadas homofóbicas no programa e com isto ofenderam fãs do programa e haters do mesmo, o que no meu cartão dá bingo. De um lado temos o pessoal que acha que o programa ter, até agora, piadas homofóbicas é o fim do mundo e que os escritores do mesmo são um grupo de pessoas preconceituosas, o que faz tanto sentido como dizer que a cereja é um fruto horrível porque gelado de cereja sabe mal (sim, não me venham com cenas, é impossível gostar daquilo. Sabe a xarope e plástico e é tão parecido com o sabor de uma cereja como as unhas dos pés do Paulo Branco). É ridículo ainda ter de se dizer isto, mas achar piada a uma coisa não quer dizer que a apoies. Eu acho piada ao pessoal de Lisboa (Leshboah) que diz “t’fone” em vez de “telefone”, no entanto não quer dizer que apoie sotaques pedantes ou erros de português. Aliás, eu acho graça a piadas homofóbicas, racistas, sexistas, com o holocausto ou até com o facto da minha avó ter Alzheimer, no entanto não quer dizer que seja homofóbico, racista, sexista, nazi ou festeje o facto da minha avó ter Alzheimer, tirando no natal e no seu aniversário porque não preciso de comprar prenda. Mais! Uma das piadas do “Family Guy” que me fez rir bastante foi quando o Brian descobre que foi para a cama com o pai transexual do Quagmire e vomita sem parar. A piada é transfóbica? É. Eu sou transfóbico? Pá… não. E as vezes que puxei o lustre ao candelabro a pensar na Roberta Close na adolescência são a prova disso mesmo. Achar piada a coisas erradas, gozar com comportamentos impróprios, assinalá-los com humor, não quer dizer que os apoies, quer dizer que existem e, exactamente por isso, por existirem numa altura de tanta informação, têm piada. Para mim, claro. Se vocês se quiserem ofender e chatear com isso estão à vontade, mas acho que, sinceramente, podiam ocupar o vosso tempo com coisas mais produtivas, como pressionar o estado para acabar com os 4000 sem-abrigo que existem no segundo país da Europa com mais casas vazias construídas, saber porque raio a Celtejo escapou só com uma reprimenda por escrito depois de fazer do Tejo uma festa da espuma ou jogar Mikado. Aliás, não sei sabem disto, mas apesar do “Family Guy” acabar com as piadas homofóbicas, vamos continuar a ver episódios com piadas com deficientes motores(Joe), racistas (Cleveland), anti-semitas (Mort) ou até com bullying (Meg), por isso um homossexual paralítico, negro, judeu e que tenha uns pais idiotas ainda vai continuar a sentir-se alvo de piadas, apesar destas já não serem sobre a sua sexualidade, portanto podem continuar a ficar irritados com a série. Ou então deixarem de a ver. é capaz de ser mais eficaz e tornar a vossa vida mais fácil. Do outro lado temos os fãs do programa que ficaram ofendidos porque “censura”. Meus caros, isto não é censura, foram os produtores do show que decidiram mudar de rumo, não foi uma circular obrigatória da Fox que os proibiu, eles simplesmente escolheram eliminar uma temática do seu arsenal de piadas. E quê? O apocalipse chegou por não verem um cartoon a chupar pilas num flashback? Eram as piadas com gays que vos faziam ver o programa? Se era só por isso que o viam tenho uma novidade para vocês: há outras séries que continuam a fazer piadas com gays para vosso deleite. Aliás, a própria Fox Comedy vai começar a passar o “Friends”, por isso piadas com gays não vão faltar e nem precisam de mudar de canal. Seja qual for o lado da barricada onde se meteram, tenho a certeza que se irritariam menos se tivessem de fugir de um tigre-de-dentes-de-sabre ou curar uma gripe com sanguessugas.
– O PCP votar contra a legalização da cannabis para fins recreativos. Sim, ainda houve gente a escandalizar-se com isto. Eu inclusivamente, até porque não conheço um único comunista que não tenha fumado um charro na vida e, tirando ideologicamente, nenhum deles era doente. Não que fizesse alguma diferença, porque quando foi para aprovar a cannabis para fins medicinais eles votaram contra na mesma. E, apesar de ter ficado bastante irritado, tenho de confessar que entendo a sua intenção de voto. É que no dia em que legalizarem a cannabis para fins recreativos, no dia em que todos pudermos fumar o nosso petardo num banco de jardim descansados e comprar erva numa farmácia, deixa de haver motivos para irmos ao Avante. “Ah… estás a falar do voto contra do PCP, mas não falas do voto contra do PSD ou do CDS. Fascista!”, atira o leitor que acha que um tipo que se parece com um Marx em início de carreira é de direita quando até o seu instrumento de prazer vira mais à esquerda do que metade do PS. Não, não falo do PSD e do CDS porque esperar coisas parvas daquele lado não é surpresa para mim e porque é natural que eles queiram que não se legalize a cannabis. Até porque ninguém que fume erva consegue ouvir o Duarte Marques ou ver a Cristas a cozinhar arroz com atum na Tv sem se desmanchar a rir. Mesmo sem fumar já é difícil! Mas mesmo eu, que não tenho uma vida propriamente difícil se a compararmos com a de um inuit que tem manter uma erecção dentro de uma casa feita de blocos de gelo se quiser ter descendência, escolhi isto para passar um dia inteiro irritado e ofendido quando tenho a casa para limpar e roupa para dar. Fiz alguma dessas coisas nesse dia? Não. Porque estar irritado com coisas e escrever posts nas redes sociais é mais importante. Ok, era mais giro fazer isto mocado e poder escolher que tipo de moca quero ter numa farmácia, mas a verdade é que com um telefonema e 20 euros posso na mesma ter uma sessão de lavandaria divertida, não interfere assim tanto com a minha vida, principalmente quando ainda nem dinheiro para renda do mês que vem tenho assegurado.