Somos uns mais ‘Earthlings’ do que outros?
Natureza, animais, seres humanos. Os “Earthlings” (terráqueos em português) incluem estas duas espécies, munidas de sentimentos, para além das demais que constituem a primeira, e, como tal, conhecidas como os seres sencientes. Porém, seremos todos terráqueos à mesma proporção? Seremos uns mais dependentes de outros? De que forma essa dependência, se existir, se expressa? A verdade é que, de forma crescente, se vem denotando e desmascarando o Carnaval que chega às bancas e aos pratos, contando narrativas que não chegam aos calcanhares das tragédias gregas, ficcionadas e representadas. Estas, no entanto, são bem reais.
Esse choque com a verdade traz-nos três fases distintas, conforme o documentário “Earthlings” assinala. A ridicularização, mal esta nos chega ao conhecimento, uma opressão veemente perante essa premissa, e, já naquilo que é o reconhecimento da sua veracidade, a aceitação. Tudo isto no encalce de um percurso de choque, de confronto com aquilo que está por detrás do véu, que é visto nas suas cores utilitárias e nos seus usos coloridos.
Tudo começa com uma ressalva importante, quanto à comercialização animal com fins domésticos. Por outras palavras, a compra e venda de animais para acolher em casa. As populações descontroladas de animais de estimação sem um teto e uma malga estáveis permanecem, com as políticas de esterilização a não conseguirem falar mais alto que o (legalizado) comércio destas espécies. Para que se regule a quantidade de animais vadios, para além dos abandonados, que são acolhidos em espaços com condições paupérrimas, surge a solução de findar com a sua vida. Terminar com uma vida, seja ela de quem for, de que forma for, não nos consegue deixar indiferentes. Mesmo assim, há quem assista, de braços cruzados, e levianamente, a práticas de extermínio (a palavra certa é esta) de uma série de animais, remontando a métodos outrora usados. Seres sencientes, com sentimentos. Tudo isto é um mero passo para uma realidade a ser desconstruída.
Os passos continuam a ser dados, desta feita naquilo que é a nossa alimentação. A adjetivação começa a ser escassa neste contacto com o impacto sensorial, em que os conteúdos visuais geram um incómodo proporcional à selvajaria normalmente associada ao animal irracional. No entanto, é no seio dos animais racionais, onde todos nos integramos, que se conduzem os mais bárbaros mecanismos de captura, criação e (des)cuidado dos futuros componentes dos pratos de cada um de nós. Os matadouros são parte deste meio ambiente, onde se geram as mais desgostosas e horrorosas imersões nos seres sencientes que não nós. A isenção de culpas propaga-se, mas não se prende com aquilo que é a decisão quanto à alimentação. Podendo ser uma das atitudes a ser empreendida, importa que a consciência permaneça bem desperta para o sucedido nas indústrias (novamente o termo certo) dos lacticínios, da charcutaria, da carne e do peixe diariamente consumidos.
O derramamento de sangue é real, não está lá com o simples propósito de chocar. Os métodos para se acabar com a vida de espécies com sentimentos são reais e aplicados, de forma massiva e maciça. São as narrativas que não nos chegam à perceção palpável e plausível, e que se fixam à distância, nas conjeturas lançadas por uns pseudo-intelectuais, que fazem povoar os seus estudos com os seus instintos radicais e conspiradores. As imagens não conseguem deixar ninguém impávido e sereno. As condições deterioradas levam a um ápice insólito, que é o do canibalismo. As degolações, as agressões baratas e gratuitas, as eletrocussões, as castrações estão registadas e perpetuadas. Ninguém as apagará de cenários reais e brutais, que surgem e se sucedem no nosso mundo, e não no do marciano alheio. É neste, no nosso. É neste em que se deixam definhar golfinhos recentemente retirados dos seus habitats naturais, e despejados num sofrimento com hemorragias incessantes.
Os interesses económicos não deixam que isto seja tomado como, pelo menos, verossímil. Por muito que haja animais sagrados em certos países, os produtos de origem animal não podem ser deixados de circular nos mercados, sob a pena de fragilizar e de penalizar o êxito socioeconómico de cada país. Pelo meio, retiram-se orelhas, caudas, reduzem-se bicos, entre outros meios de tortura. Tudo em vista de obter o benefício do ser animal. Mal este é colhido deste, o seu destino não só não se torna ambíguo, como cruel. Ao invés da produção em massa, entra o animal em massa. A sua descaraterização e desvalorização despersonaliza cada um, deixando-o ao encargo da sorte, que balança entre o azar e a tragédia. Entre a morte repentina e paulatina.
Os instintos sanguinários e primitivos do ser humano não findam aqui. Para fundamentar e fomentar o seu lazer, surgem os espetáculos tauromáquicos, os rodeos, para além dos já geracionais caça e pesca, para os quais já se junta a particularização de serem desportivas. Os circos alimentam perspetivas legítimas daqueles que reivindicam os direitos dos animais, constante e violentamente violados nas texturas de espetáculos pobres em conteúdos, mas ricos em lucros. O treino do animal é consubstanciado por castigos, que são tudo menos instrutivos e benévolos para a própria domesticação deste. Para além disso, as condições degradantes e descontexualizadas das suas raízes nas quais vivem são patentes e marcantes, assim como os jardins zoológicos, imponentes na forma como cativam os mais jovens na demonstração da ampla fauna mundial.
Por fim, a ciência. As constantes experimentações nas espécies, tanto provenientes das farmácias como das cosméticas, ambas fontes de indústrias de vulto, onde se movimentam quantias exorbitantes para estudos e testes intrusivos em relação ao bem-estar físico, mental e emocional do animal. Os laboratórios não se cingem a um mero estudo, em que a ética está inerente à prática científica. Longe vão os tempos em que a ciência era a luz transparente de um caminho idílico de atuação. Tudo isto não quer generalizar aquilo que é este caminho do saber, o núcleo substancial daquilo que é a herança do conhecimento que se traz para os dias de hoje. Aliás, é pela ciência que é possível explanar todos os cenários apontados e tecer comentários perpendiculares aos mesmos.
Desde 2005, em que esta realidade foi sendo desdobrada, até aos dias de hoje, muito foi feito. Foram várias as vitórias arrecadadas em prol dos direitos elementares dos animais, seres sencientes à imagem dos humanos, e despojados de qualquer autonomia proveniente da consciência. As instituições fortaleceram-se, as causas chegaram às mais altas instâncias políticas, tanto nacionais como internacionais, e nós, seres humanos, estamos mais cientes e sintonizados do valor de verdade associado ao documentado. Para além disso, a afeição em relação ao animal vai aumentando, nem que seja pelo carinho que cada um desencadeia nos corações dos mais ou menos sensíveis. Não obstante, os desafios permanecem os mesmos. Em cada dia que passa, a emergência de que vozes permaneçam a bater-se por causas onde os lesados não têm voz vai-se reforçando.
A verdade não consegue ser refutada. Por mais que seja posta em causa, os factos não deixam de ser a evidência daquilo que foi ou é. Também nisto estamos sustentados nas posições que assumimos, crescentemente a favor daqueles que não dispõem da tal voz ativa. A sensibilidade discursa com maior amplitude, mas sem se desprender da legitimidade daquilo que discute, daquilo que reivindica. Desde a ciência até ao desporto, passando pelo comércio e pelas práticas mais primárias da economia, não são raros os casos em que a legislação tácita sobre os direitos dos seres sencientes é dizimada. De forma astuta estão aí os canais de comunicação, a serem usados com critério e certeza. Quanto a atitudes a serem assumidas de fora para dentro, as consciências saberão o que dizer. Em cada um de nós, privilegiando a diferença que nos liga em igualdade.