“Spencer”: a inspiração de Pablo Larraín em “Black Swan”
Este artigo pode conter spoilers.
Ao chegar a denominada “Oscar season” os filmes biográficos são sempre um alvo apetecível. Quando se alia o biopic a uma personalidade como Diana, o potencial para produzir um filme melodramático e exploratório é virtualmente infinito, arriscando-se “Spencer” a ser mais um filme de linha de montagem, engrandecido pelo seu objecto, e dirigido por um qualquer realizador de pouco talento igualmente destinado a uma nomeação para melhor realização como aconteceu, por exemplo, com o medíocre Tom Hooper, em The King’s Speech (caso a receita de bilheteira seja gorda o suficiente). Felizmente Pablo Larraín não é esse realizador e decidiu virar as costas às rígidas regras do biopic. Já em “Jackie”, que tem por objecto Jackie Kennedy, Larraín mostrava laivos de uma certa rebeldia formal, que se veio agora a confirmar em “Spencer”.
Ao invés de se focar na vida de Diana de uma forma geral, ou mesmo nalgum episódio particularmente marcante, a escolha recai sobre um fim de semana de Natal que Diana passa com a família real britânica numa das suas casas de campo, que coincidentemente é perto da casa onde a princesa cresceu. Os fãs de lady Di ficarão provavelmente desapontados com a interpretação de Kristen Stewart e com o retrato que é feito da própria Diana. Muitos dirão que a personalidade que é retratada, os trejeitos, as roupas ou mesmo a forma de falar estão bem distantes da personagem real. No entanto, se nos afastarmos dessa ideia pré-concebida, da mesma forma que procuramos fazer ao ver a adaptação para cinema de um livro que tenhamos lido, é possível ver em “Spencer” uma interpretação livre, inspirada, e intensa, que está mais focada em caracterizar uma mente fraturada numa prisão de ouro do que em retratar fielmente um momento da vida da sua protagonista que, provavelmente, é pura ficção. Esse é o grande foco de Larraín.
À medida que vamos observando Diana deambular, febrilmente, pelos corredores da mansão real acompanhada pela banda sonora desconcertante de Jonny Greenwood, rapidamente percebemos que não estamos perante um filme biográfico normal, mas antes perante um objecto que pretende afastar-se dos rótulos do género com vista a oferecer uma experiência visceral e a espaços até desconfortável. O espectador perde-se no labirinto que é a mente de Diana, sufocada pelas regras de etiqueta de um Mundo ao qual não pertence, das horas a que é suposto estar à mesa e das roupas que é suposto vestir para cada actividade. Temos assim acesso ao lado mais recatado dessa mente quando a princesa se esconde, à noite, no quarto dos filhos para brincar. Mas o realizador vai mais longe. É clara a inspiração que “Spencer” vai buscar a “Black Swan”, não só em relação à espiral descendente da saúde mental da sua protagonista, mas também quanto à linguagem metafórica, por vezes física (Diana quebrando um colar de pérolas dentro de uma taça de sopa, deglutindo-o com decoro perante Isabel II), que funde a realidade com a ilusão.
O efeito foi bem conseguido. “Spencer” consegue ser um espaço hermético, por vezes delirante e onírico, e é uma completa surpresa para quem esperava um biopic comum. História real ou não, interpretação fiel à personagem real ou não, “Spencer” é um filme que supera as expectativas e que, apesar de provavelmente desiludir os fãs da figura que foi a princesa Diana que terão que esperar mais um pouco para um retrato cinematográfico mais fiel, irá ironicamente talvez agradar a quem está mais cansado do tema “família real”. Kristen Stewart confirma que é uma actriz versátil e talentosa, uma lufada de ar fresco quanto à forma como aborda a sua interpretação, livre das amarras do género que teima em confundir imitação com interpretação. Ainda assim, “Spencer” é demasiado minimalista para o seu próprio bem, por vezes demasiado fragmentado, nunca conseguindo quebrar o limbo de tensão que coloca em prática ao longo de duas horas e que permite antecipar a qualquer momento um clímax que insiste em nunca chegar.
Porque é bom: a abordagem refrescante ao biopic, que acabar por não o ser; a inspiração na espiral descendente da saúde mental de “Black Swan”; uma interpretação livre de Kristen Stewart; banda sonora desconcertante de Jonny Greenwood.
Porque é mau: “Spencer” é demasiado minimalista para o seu próprio bem, por vezes demasiado fragmentado, nunca conseguindo quebrar o limbo de tensão que coloca em prática ao longo de duas horas e que permite antecipar a qualquer momento um clímax que insiste em nunca chegar; irá desiludir os fãs da princesa Diana que esperavam um retrato mais fiel.