Streaming. A democratização já foi, agora é a redistribuição

por Davide Pinheiro,    7 Janeiro, 2021
Streaming. A democratização já foi, agora é a redistribuição
Ilustração Comunidade Cultura e Arte
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A haver uma palavra que defina a música popular na era da Internet é democratização. E por democratização entenda-se não o mundo perfeito mas mais oportunidades para mais pessoas, sobretudo na era das redes sociais e do streaming. A democratização nunca é um processo perfeito ou justo mas garante pelo menos um acesso mais equitativo. A Internet e as suas ferramentas contribuíram decisivamente para dar voz a quem tinha mais dificuldades em fazer-se ouvir, multiplicando as hipóteses de criação, comunicação, distribuição e impacto. Nos últimos dez anos, esse foi o discurso dominante, mas tal como foi necessário reformar a música popular a partir de um tempo diferente, é urgente recentrar o debate sobre o streaming a partir de uma mais justa distribuição dos direitos.

2020 foi um ano mau para quase toda a gente mas houve quem respirasse sem máscara. O patrão da Amazon Jeff Bezos avolumou a fortuna em 70 mil milhões de dólares (perto de 58 mil milhões de euros) enquanto operadores de armazém tinham os segundos contados para fazer as necessidades. O confinamento global contribuiu para o crescimento dos serviços de entrega e, por arrasto, do exército de novos escravos que passa vermelhos para entregar em tempo recorde a Calzone acabada de sair do forno. E o Spotify, tal como os restantes serviços de streaming mais populares, crescia enquanto a ordem era para ficar em casa — só no final de Outubro, já eram mais de 320 milhões os utilizadores e 144 milhões os assinantes do serviço premium. Um crescimento acima de todas expectativas, alimentando uma recuperação sem precedentes da indústria da música depois de perdas consecutivas desde o final do século, quando a pirataria ilegal irrompeu, subtraindo dividendos e empregos. Antes de o vírus se espalhar, só as três editoras multinacionais (Sony, Universal e Warner) já facturavam, em conjunto, um valor total de mais de 20 milhões de euros diários. Dinheiro novo, é um facto, mas para quem? Enquanto em Inglaterra 82 por cento dos músicos recebem menos de 200 libras (cerca de 222 euros) anuais, o Spotify adquiria com efeitos de exclusividade o podcast de Joe Rogan por cem milhões de dólares (92 milhões de euros). Já Nadine Shah, artista inglesa de sensibilidade parecida à de Anna Calvi, que em 2020 editou o muito razoável Kitchen Sink, e já antes nomeada para um Mercury, foi obrigada a voltar para casa dos pais aos 34 anos. E escritores de êxitos pop recebem pouco mais 100 de euros por canções com mais de um milhão de visualizações no YouTube.

Nem Nadine Shah tem o número de seguidores do podcast de Joe Rogan nem as plataformas de streaming têm qualquer obrigação de lhe pagar a renda, mas há algo de profundamente errado nesta encruzilhada. E que não está no streaming enquanto modelo de distribuição de conteúdos musicais mas sim na redistribuição dos direitos. De acordo com o Parlamento inglês, os músicos recebem apenas 13% do bolo. Está toda a gente a lucrar mais do que quem cria, mas sem conteúdos estas plataformas não têm razão de ser. 

2020 um ano para esquecer? Não, 2020 um ano revelador de buracos no sistema e por isso, útil e necessário para tirar ilações e reparar o que está mal. A necessidade de repensar a distribuição dos direitos já era para ontem e nem sequer é um exclusivo do streaming. A economia digital é opaca e precisa de regulação urgente e dinâmica, para ser capaz de responder às actualizações constantes. Lá está, estes serviços evoluíram mais depressa do que a legislação, criando inúmeras zonas cinzentas exploradas pelos novos magnatas do Spotify, do Netflix, da Uber ou da Amazon, mas olhando para a música, reivindicações passadas de figuras como Thom Yorke ou Taylor Swift não se amplificaram em causa comum porque, entre outras razões, a expansão do circuito global de concertos e festivais, alimentado por marcas ou instituições, desviou o olhar de muitos daqueles que nos últimos anos conseguiram fazer da utopia o sonho acordado. Sem concertos, a principal fonte de receitas, o extracto de conta foi verificado com outra atenção. As palavras de Nile Rodgers são elucidativas. Até ao ano passado, o líder dos Chic sustentava a equipa apenas com o dinheiro das digressões mas 2020 parou a máquina. E agora? “Nem se sabe quanto vale um stream. Alguém sabe?”, admitiu na Câmara dos Comuns. A locomotiva do funk culpa as editoras pelos contratos e pede mais informação sobre cláusulas para os músicos, mas se é certo que a última década foi de aprendizagem para todos na indústria da música sobre as novas plataformas, também é verdade que só a desaceleração da máquina pop e o esvaziamento das contas poupança selou com carácter de urgência o problema. Se não fosse assim, a caravana continuava a passar, a cantar, a rir e a assobiar. 

E se é um facto que, contra todas as expectativas, as vendas de vinil superaram todos os recordes desde o final dos anos 80, quando o CD se estabeleceu, e as sextas-feiras do Bandcamp geraram a bonita soma de 40 milhões de dólares (32 milhões de euros), sem comissões para a plataforma, o streaming continua a crescer e a cavar um fosso maior para os outros modos de consumo de música. Por isso, se queremos continuar a acreditar na democratização e a ver artistas subverter regras e obrigar a indústria a reinventar-se, impõe-se uma redefinição das regras do jogo. Estamos a falar das novas donas disto tudo. Companhias capitalizadoras da nossa atenção que, de ano para ano, têm robustecido os seus ganhos. Os políticos com influência não podem continuar a olhar para o digital com o deslumbramento cínico de quem tira selfies na Web Summit para colher votos nas eleições seguintes, ignorando o impacto, quer no tecido económico, quer nas nossas vidas. O debate está na rua e 2020 deixou evidente a inquietação de uma juventude menos disposta a tolerar desigualdades. A vacina vai resolver alguns problemas, para este não vai criar imunidade de grupo.

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