Super Bock em Stock 2018 (dia 1): um sobe e desce musical
2018 trouxe o rebaptizado Super Bock em Stock de volta à Avenida da Liberdade e áreas circundantes. O festival, que já é um estandarte da época outonal de concertos, foca-se em trazer nomes borbulhantes da cena musical contemporânea, estrelas em ascensão e alguns nomes já mais bem cimentados. O conceito do festival é o de dinamismo, incitando as pessoas a mexer-se em nome da música, subindo e descendo uma das mais afamadas artérias da cidade de Lisboa. O clima húmido não ajudou, mas também não impediu que o público fizesse a festa nos mais de 25 espectáculos diários. Aqui contar-vos-emos a nossa experiência no festival.
Chegámos à sala maior do Cinema São Jorge para assistir ao espectáculo dos Public Access T.V., numa altura em que a audiência se engrossava cada vez mais. A banda nova-iorquina recebeu louvores da reputada NME, facto que não nos surpreende, ao ouvirmos o indie rock claramente inspirado no outro lado do Atlântico. Uma espécie de The Kooks com um pouco mais de distorção e acidez, a banda vai avançando pela ginga das suas batidas animadas sem grande entusiasmo, nem por parte deles, nem do público. Ocasionalmente, a proeza técnica dos elementos eleva um pouco mais as canções, mas acabam sempre por soar a uma pastiche pouco relevante de coisas que já foram feitas de forma mais interessante. Seguimos então para outras paragens.
No Teatro Tivoli, já Lena D’Água e Primeira Dama actuavam com a sua Banda Xita. Chegámos a tempo de ouvir a versão actualizada de “Dou-te um Doce”, clássico da artista que conta já com uma carreira prolongada e que se encontra agora numa ressurgência, graças à admiração da sua música pela cena independente portuguesa. Na alternância entre canções de um e outro, ouvimos também “Rita”, canção de Primeira Dama, aqui numa versão de som mais cheio do que quando Manel Lourenço actua a solo. Nota-se algum amadorismo por parte da banda, mas o espectáculo vinga acima de tudo pela simbiose e carinho que há entre os seus intervenientes; no fim de uma das canções, Lena e Manel trocam um abraço forte. Apesar disso, o concerto acaba por não ser mais do que uma curiosidade.
A próxima jornada num dos shuttles da Taxify – opção confortável e eficiente para nos transportar de recinto para recinto, apesar das caóticas obrigações de trânsito da Avenida – leva-nos ao Coliseu dos Recreios, onde vemos Manuel Fúria e os Náufragos. Banda já bem estabelecida na cena musical portuguesa, mas que parece estar sempre um pouco à margem do burburinho actual, justifica o seu estatuto com canções viciantes e muito bem construídas, com um gostinho de nostalgia. O concerto resgata alguns ex-Náufragos para tocarem como convidados, incluindo Tomás Wallenstein, dos cabeças-de-cartaz Capitão Fausto, no violino em “Que Haja Festa Não Sei Onde”. Ouvimos a fabulosa “Cavalos Brancos”, que mete o público a cavalgar ao ritmo irrequieto da canção. É uma beleza, mas acabamos por seguir para outro lado, pois o festival assim o requer.
Conan Osiris. Já muito se escreveu sobre ele, odiado por muitos, que lhe vaticinam uma carreira efémera, amado por muitos outros, que reconhecem um talento bastante superior à mera declaração “Adoro bolos”. É possível que estejamos na segunda facção, com a opinião consolidada depois do que se viu no Tivoli, totalmente lotado. Conan Osiris entrou em palco para interpretar “Beija-Flor”, num palco muito pouco iluminado, para pouco depois pôr todas as pessoas, de todas as idades, a dançar e a cantar todas as letras durante uma hora e qualquer coisa. E muito já mudou desde a última vez que o vimos, está cada vez melhor, cada vez mais seguro, com uma enorme gratidão por todos os que o vão ver. Há dias ouvimos dizer que a música de Conan Osiris é o batimento cardíaco de Lisboa. A julgar pelo pulsar das centenas de pessoas que lotaram o Tivoli, é bem possível que seja.
Subimos até ao Capitólio, espaço dedicado à vertente mais urbana da música, recebendo artistas da esfera do hip-hop. NGA, rapper angolano sediado nos subúrbios lisboetas, actuava para uma pequena multidão que estava mais no espírito de ouvir e sentir do que ser propriamente interventivo. Apesar disso, tentava puxar pelo público, desiludindo-se ligeiramente com a reacção e passando então às canções. Essas talvez fossem a causa da pouca adesão do público, com os seus beats algo genéricos que incitavam a algum movimento, mas não muito mais. O espectáculo valeu mais pelo flow do rapper, que já ganhou muita quilometragem ao longo dos seus 20 anos de carreira. No final, acabou em palco rodeado de mais de uma dezena de membros da sua crew, uns filmando, outros dançando entusiasticamente, deixando tudo em família.
Antes de regressarmos ao Coliseu, damos um pulinho ao concerto de Iguanas na Garagem EPAL, mas não ficamos por lá muito tempo. Onde esperávamos encontrar um duo, vemos apenas Leonardo Bindilatti a destilar os beats apressados da banda sem a postura curiosa de Lourenço Crespo para as complementar. Assim, o concerto acaba por ser mais um DJ set passável.
Assim, fomos reviver a cena de Manchester pelas mãos de Johnny Marr, que começava o seu concerto com pontualidade britânica. Intercalando as suas próprias canções com alguns clássicos dos incontornáveis The Smiths, o artista foi entusiasmando uma plateia atenta, que claramente se deslocou até ali para se sentir um pouco mais próximo de uma das bandas mais determinantes da música alternativa, mesmo não tendo a experiência completa na voz de Morrissey. A reacção a “Bigmouth Strikes Again”, de The Queen is Dead diz tudo: isto é uma viagem de nostalgia. Para quem não se revê ou não conhece bem o legado dos Smiths, talvez tudo isto passe um pouco ao lado, mas não há como negar a virtuosidade na guitarra de Marr e a sua capacidade de compor canções que parecem vir directamente dos anos 80. Nota-se alguma experimentação na sua música, como nos sintetizadores de “New Dominions”, do mais recente Call the Comet, que acaba por soar só a um new wave esquisito. Vamos para outras paragens ao som de “The Headmaster Ritual” e mais uns uivos de júbilo do público.
De volta ao Capitólio, vemos uma das grandes promessas do hip-hop antes daquela que muito provavelmente será uma explosão astronómica. A fila para ver Masego diz tudo: este é o sítio para se estar. O artista de 25 anos fez ondas com a sua canção “Tadow”, que abre logo o concerto para uma reacção efusiva e captar a atenção desde início. O ritmo sedutor e compassado reflecte-se na forma como a massa de gente se vai serpenteando. O espectáculo marca a diferença dos outros espectáculos do Bloco Moche a que assistimos no Capitólio, pela presença de uma banda ao vivo que enriquece a soul aveludada do afro-americano. As canções vão-se seguindo sem quebras de ritmo e partilha-se a boa onda entre público e artista, em momentos determinantes do novo álbum, como “Queen Tings” ou “Lady Lady”. Como se isso não chegasse, Masego leva o público ao delírio quando pega no saxofone que é uma das suas imagens de marca; se o seu timbre R&B e letras sensuais já exacerbam a sedução da soul, o saxofone é a cereja no topo do bolo.
A pena de deixarmos Masego a impressionar dissipa-se no concerto de Natalie Prass, que se apresenta a nós numa versão bem mais funky do que aquilo que o seu primeiro álbum nos mostrou. Até algumas canções desse mesmo álbum foram tocadas de forma diferente, como “Bird of Prey”, que lucrou com uma aceleração do ritmo que a canção estava a pedir desde que foi lançada. Mas o mote do concerto foi o lançamento de The Future and the Past este ano, por isso sentimo-nos abençoados por chegar mesmo a tempo de ouvir “Hot for the Mountain”, uma das canções mais interessantes deste novo disco, com o seu flow que mistura jazz e hip-hop. Natalie revela uma veia mais política ao dedicar “Ship Go Down” ao seu país de origem, os Estados Unidos, em que o nome da canção diz tudo; no entanto, ficou a faltar o hino feminista “Sisters”. A sua voz nasalada soou imaculada como de costume, mesmo perdendo-se um pouco no meio da mistura sonora. A artista sentiu-se tão confortável na bela Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge que até contornou a setlist para nos dar “It Is You”, a sua bela versão de uma canção de um qualquer filme da Disney.
A nossa demora com Natalie leva-nos a chegar ao último concerto da noite já a meio. Pelo menos, apanhamos a ode dos Capitão Fausto ao seu bairro de eleição, “Alvalade Chama Por Mim” – canção belíssima como sempre. Esta segunda metade foi mais dedicada a A Invenção do Dia Claro, álbum ainda por lançar. Infelizmente, as canções soaram um pouco mortiças – não percebemos se pela disposição da banda ou pelas canções em si – não entusiasmando o público que ainda não as conhece (bem). Por outro lado, a reacção foi muito diferente noutras como “Teresa”, “Febre” ou “Morro na Praia”, que terminou o concerto numa nota elevada. Talvez este concerto tenha sido algo prematuro. Esperamos vê-los em breve, já depois de nos familiarizarmos com as novas canções.
Este primeiro dia de festival revelou-se equilibrado, se bem que se notou alguma falta de nomes fortes que puxassem mais pelo público – e, com tanta música nova e boa a ser lançada, isso acaba por ser ainda mais desapontante. O dia seguinte já foi diferente, com o claro chamariz do festival, os britânicos Jungle, e outras promessas, como Tim Bernardes, Rejjie Snow ou U.S. Girls.