Super Bock em Stock (dia 1): leve e descontraído
O temporal que assolou o início de dia na capital pressagiava uma movimentação reduzida entre os vários palcos do Super Bock em Stock. Mas no final da tempestade surgiu a definitiva bonança e a noite livre de aguaceiros foi preenchida por música leve. Da cadência relaxada de AMAURA à soul e ao folk concentrado de Michael Kiwanuka, o primeiro dia do festival esteve recheado de sonoridades leves e descontraídas, para contrastar a correria de chegar a horas a todo o lado.
Na chegada ao Capitólio, era o som de uma guitarra cortante em “Terra” que nos guiava até aos escondidos bastidores deste local, e foi João Tamura quem inaugurou o palco Bloco Moche Lá Fora. De Singapura para Lisboa, o primeiro acto do álbum de estreia do rapper foi apresentado com critério e Tamura demonstrou a sua poesia acutilante e de tom incisivo, acompanhado por Vasco Completo na guitarra e teclas, Miguel Ropio no baixo e guitarra e L1NK nos pratos. O seu novo projecto foi apresentado na íntegra a uma pequena multidão que teimava em manter uma distância confortável em relação ao palco. “Esse espaço aí é para os fotógrafos passarem à vontade?”, o artista brincou com a situação e a audiência anuiu e aproximou-se.
Notou-se algum nervosismo inicial que se evaporou com o decorrer do concerto, e a atitude de Tamura adequou-se às músicas que interpretou. Na soturna “An24seplissin” e na melancólica “Os Paraísos Segundo a Sara” vimo-lo sentado, destilando rimas com brio. Nos restantes temas estava mais efusivo, mas fosse qual fosse a cadência notava-se empenho em dar o melhor espectáculo possível. Pelo meio, houve ainda tempo para os amigos e para Vasco Completo apresentar o seu novo tema “Serotonina” que conta com a participação do artista que Completo acompanha. Foi um começo pacato e caloroso para uma noite fresca e ao despedir-se com “Terminus” Tamura prometeu mais novidades para breve. Aguardamos ansiosamente.
Luís Severo e convidados encheram o Tivoli. Luís Severo é, reconhecida e meritoriamente, considerado um dos melhores cantautores portugueses actualmente. A resposta fez-se pela sala cheia, embora o remoinho de entradas e saídas, que tanto caracterizam este festival, possa ter sido algo perturbador para quem queria embalar ao som de Severo. Acompanhado por harpa, violoncelo e contrabaixo, alternando entre a guitarra e o banco seguro do piano-órgão, Luís Severo fez o que nos tem vindo a habituar, percorrendo o seu repertório de canções consistente.
Sem tempo a perder, a disciplina de Ciência Rítmica Avançada iniciou o seu segundo capítulo dentro do Capitólio no palco Bloco Moche Lá Dentro, e a professora foi AMAURA. A artista veio apresentar a sua mixtape de estreia EmContraste cheia de groove a uma sala pouco composta. Mas isso não a impediu de recompensar os madrugadores com uma atmosfera quente e doce e até com uma música nova, “Um Só”. “Quantas raparigas estão aqui? E quantos rapazes? Porque é que tem que ser sempre assim dessa forma?”, exclamou a artista alegremente desapontada com o tom grave proveniente da facção masculina da sala, após o qual dedicou “TPM” a todas as mulheres ali presentes. Arrancou risos e passos de dança em doses equitativas sem nenhum momento parado pelo meio.
Escondida atrás de óculos de sol e uma descontracção muito sua, AMAURA escorregou com rapidez por todas as músicas que compõem EmContraste, sem grande tempo a perder entre temas. E a artista pediu desculpa pela correria acrescentado “já sabem como é em concertos de festival”. Para compensar, tocou uma cover sentida de “Valerie” de Amy Winehouse, com uma primeira estrofe despida e com uma entrada em força na segunda estrofe, dinâmicas múltiplas bem conjugadas. Mas no meio desse turbilhão de ímpeto e velocidade não passou despercebida a energia possante de “Marvel da Tuga” ou o dolce far niente de “Blues do Tinto”. O projecto de estreia de AMAURA trata de contrastes mas ali só se viu um rumo como “Dança” tão bem mostrou: festa e diversão, seja para um ou seja para mil.
Entretanto, no São Jorge, Murta estava quase a dar o seu primeiro concerto com banda. Murta, de 21 anos, passou pelo The Voice e tem vindo a conquistar espaço na pop portuguesa. A sala, muito bem composta, viu provavelmente o artista mais feliz da noite, com Murta feliz pelo momento e com os fãs, já muitos, a cantarem as músicas de uma ponta a outra. O futuro da música pop portuguesa, com reminiscências de hip-hop, está bem e recomenda-se.
O Jimi Hendrix, o Isaac Hayes e o George Clinton entram no bar. Qual é o cocktail de fusão com que brindam? A resposta é Michael Kiwanuka. E ainda que estes três míticos nomes não tenham estado presentes na passagem desse multifacetado artista pelo Super Bock em Stock, parecia que estava toda a gente que resta. O Coliseu dos Recreios estava cheio para receber o músico britânico, que se fez acompanhar por uma banda de seis elementos e ao som do tom rouco e apaziguador da sua voz fomos levados numa viagem musical sem sair do presente. A virtude de Kiwanuka está na capacidade que tem de encapsular uma sonoridade vintage com uma abordagem moderna, e na facilidade com que o faz. “One More Night” abriu o concerto com esse conceito bem presente, e a voz do artista viajou pelo espaço e pelo tempo até aos ouvidos de todos aqueles que escutavam.
A actuação passou pelos vários projecto do artista com especial destaque para Love & Hate, onde a energia do espectáculo mais transpareceu. Foi verdadeiramente entusiasmante ver como Kiwanuka cativava tanto com tão pouco. Discreto, de guitarra em riste e próximo do microfone, o músico era timidamente explosivo e o público respondia com afinco. Mas a sua banda também acompanhava esta energia e redobrava-a. Depois de uma excelente prestação da energética e dançável “Black Man in a White World” acompanhado pela percussão das palmas do público, “Rule the World” acalmou os ânimos durante pouco tempo, quebrado por um solo absolutamente fenomenal de uma das vocalistas que acompanhava Michael Kiwanuka. A soul e a música folk unidas sob um único artista, que lhes faz mais do que justiça, sem dúvida o “Hero” destes géneros musicais nesta noite do Super Bock em Stock.
Houve espaço para um agradecimento íntimo a Portugal sob a forma de “Home Again”, momento de telemóveis ao alto no público e guitarra acústica ao peito no palco. Mas a altura mais evidente desta captura de momentos patrocinada por uma lente de bolso – e estranhamente, um bizarro sinónimo do tremendo apreço do público pela música a ser tocada – foi na clássica “Cold Little Heart”. A espantosa versão de dez minutos foi aqui encurtada e apesar de não ter havido tempo para criar a magnífica atmosfera em que a música desagua, a sua potência mostrou-se de forma evidente. Foi um concerto curto mas repleto de momentos memoráveis, a prova de que a sonoridade do passado consegue singrar no futuro que não conhece, e de que a música boa é e sempre será intemporal.
Ao som de Mar & Sol Soundsystem, despedimo-nos do Coliseu e corremos em direcção para ver o retorno dos Ganso ao Super Bock em Stock, que saíram da garagem e subiram para a Estação Ferroviária do Rossio. Estava um caótico ajuntamento de pessoas no início do concerto que progressivamente foi ficando mais reduzido e nas zonas mais recuadas do público parecia haver algum desinteresse perante a apresentação do novo álbum de Ganso, Não Tarda, tocado na íntegra. Mas muita da culpa recai sobre o sistema de som do palco, com uma qualidade a roçar o terrível, que fundia as melodias instrumentais e as letras de João Sala em mesclas de onomatopeias difíceis de desvendar, algo que foi especialmente desapontante num dos palcos mais interessantes do festival. O trabalho anterior não foi esquecido e Pá Pá Pá e o EP Costela Ofendida fizeram aparições esporádicas ao longo do concerto. Mas havia uma música que seria o tema perfeito para concluir o concerto que infelizmente faltou: “Pistoleira” não fez a sua tradicional aparição e quem aguardava ansiosamente por um um dos melhores temas da curta discografia dos Ganso ficou desapontado. O concerto foi contido e sem grande entusiasmo e terminar sem essa mítica música foi a cereja no topo dos brócolos.
Além da enchente que se fez notar no Coliseu dos Recreios, também o São Jorge foi pequeno para receber a pequena multidão que queria ver a estreia em Lisboa de Nil üfer Yanya. Depois de um belíssimo concerto no NOS Primavera Sound deste ano, a artista britânica apresentou “Miss Universe”, o primeiro álbum da artista lançado na Primavera. Com incursões na soul e jazz, Nilüfer Yanya tem uma presença bastante forte em palco e uma voz perfeita, que não fazem adivinhar a vulnerabilidade muitas vezes expressa nas músicas. Na fila da frente, e certamente a marcar lugar há bastante tempo, dois fãs eufóricos davam as boas-vindas de Nilüfer à capital, e, à saída, muitos outros tentavam entrar, deixando adivinhar que uma vinda em nome próprio da artista é muito mais do que bem-vinda.
Hoje espera-nos Slow J, Viagra Boys e muitas subidas e descidas pela Avenida da Liberdade.