Super Bock em Stock (dia 2): o lufa-lufa na Avenida entre concertos memoráveis
O segundo dia do Super Bock em Stock era o dia mais desafiante. A julgar pelas filas do dia anterior, ser-nos-ia exigido um planeamento minucioso, embora implicasse ainda assim algumas concessões pelo simples e muito humano motivo de não conseguirmos estar em todo o lado. Para um festival como este, é necessário algum trabalho de casa e alguma sorte, sendo quase sempre possível assistirmos a um concerto que nem sequer tínhamos pensado, mas que se transforma no melhor da noite. Este ano, momentos desses pareceram abundar, sinónimo de um cartaz repleto de nomes pouco assíduos em Portugal e de elevada qualidade.
À hora planeada, uma sample “bêbada” começou a ouvir-se no palco Bloco Moche Lá Fora. Calmamente, Keso surgiu descontraído, com o seu habitual ar caloroso e sorriso convidativo e meteu mãos ao trabalho. “Underground” contrastou a atitude relaxada com um instrumental soturno e rimas praticamente declamadas como poesia. Mas foi uma boa introdução para o espectáculo que se seguiu: um showcase da editora Paga-lhe o Quarto, encabeçada por este MC e produtor do Porto e em que é “tudo feito a partir de casa, sem majors por trás”, como Marco Ferreira referiu. É um trabalho louvável e o que separa Keso de muitos outros é a sua disponibilidade para promover e auxiliar aqueles que querem realmente fazer arte. E durante uma hora, foi isso que testemunhámos: a nata nortenha do hip hop underground.
Cinco artistas passaram por aquele palco e mostraram as suas valências e flows, alguns mais discretos – como Myka, M’Cirilo e Bug, este último que conta com o EP Tripolar lançado no mês passado – e outros mais carismáticos como Pibxis, descrito por Keso como um “doido da escrita”. Mas o prémio de revelação da Paga-lhe o Quarto vai para Riça. Depois de “É Lá na Bouça” protagonizar de forma jocosa o “momento rural” do espectáculo, a fenomenal “Dragão IV” afastou qualquer dúvida de que o artista de Gandra está na brincadeira. Foi o violento banger da noite e prova legítima de que o horrorcore continua a ser uma referência actual. No final, todos os artistas se uniram para ajudar Keso a cuspir “Rooftop”, com o líder a balizar o espectáculo com dois temas de Ksx2016. Este showcase foi (mais) uma prova de que a música independente continua viva e do tremendo valor de Keso enquanto impulsionador da cultura hip hop nacional.
Após o concerto de ORTEUM no Capitólio fica uma certeza: são uns tipos zangados. E isso é sem dúvida um elogio e nunca um insulto. A sua atitude é altiva e autoritária e a cara podre é o escudo que os protege daqueles que teimam em não compreender a força e voracidade desta colectiva tornada trio. No segundo dia do Super Bock em Stock, Tilt, Nero e Mass incendiaram o público com o seu boom bap com negrume, num espectáculo de apresentação do seu primeiro álbum A Última Gota, que contou com DJ Ketzal nos pratos.
As iniciais do seu nome são sigla para um hino que é lema desde o início da colectiva: “O Rap Tuga É Uma Merda”. É com desprezo que se insurgem contra um género musical cada vez mais afastado das origens humildes e artísticas, ofuscado pelo falso brilho de um consumismo desmedido e entupido por música desprovida de conteúdo relevante. Mas o nome é um protesto contra um grupo onde ORTEUM nunca podem ser inseridos: há raiva nas suas palavras, mas isso não tolda a qualidade exímia das suas barras ou a complexidade dos seus instrumentais. Ao vivo, essa atitude mostra-se igualmente confrontante, com a ajuda de alguns MC’s como Johny Gumble em “Jurássico” ou Beware Jack em “Complexo de Atlas”. Depois de uma sessão de grande qualidade de beatbox, “Anda” surgiu nos momentos finais de forma ameaçadora uma actuação de energia incansável e de ritmo fervoroso. Permitam-nos discordar com ORTEUM (com algum medo de represálias): o rap tuga é bom, como eles o continuam a provar. Só temos é de saber onde procurar.
Curtis Harding, natural do Michigan, é um dos nomes do r&B contemporâneo. A premissa fez-se observar em palco, com todas as reminiscências, com todo o groove e abanar de anca. Talvez por termos demasiado presente a memória de Gallant, neste mesmíssimo Coliseu e neste mesmíssimo festival, esperávamos mais de Harding. Um amante do r&b não terá decerto ficado desiludido com a voz e presença do norte-americano, que passou pelos seus dois álbuns e ainda por uma cover de “To Love Somebody”, dos Bee Gees.
Decidimos dar uma espreitadela à Casa do Alentejo para vermos Orville Peck, um “cowboy foragido” que se apresenta com uma máscara que só permite que lhe vejamos os intensos olhos azuis. Com uma sala completamente lotada – e com muita gente em fila de espera – Orville Peck foi uma daquelas surpresas que rapidamente se transformou, seguramente num dos melhores concertos do festival. A apresentar o seu disco de 2019, “Pony”, Orville Peck chegou para nos mostrar a sua fusão de shoegaze com música country. Às vezes, enquanto o ouvimos, pensamos em Elvis, pensamos em Marlon Williams (que também foi baptizado como o “novo” Elvis), mas Orville Peck é mais qualquer coisa que não conseguimos explicar, e é avassalador. Para acompanhar!
Helado Negro começava no São Jorge e este foi um de muitos que nos fez correr pela Avenida acima. De seu nome Roberto Carlos Lange, mistura inglês e espanhol, jazz e folk, electrónica e sons latinos. Esta mescla, apresentada a uma sala cheia, provou ser uma receita perfeita para um dia meio farrusco. “Young, Latin & Proud”, sempre.
O sonho comanda a vida. É verdade que é uma frase batida mas todos os lugares-comuns assim o são porque transmitem verdades universais. E nenhuma frase descreve melhor João Batista Coelho. O artista que assina como Slow J deixa o seu sonho artístico falar por si e continua a superar patamares e encheu o Coliseu dos Recreios naquela que foi uma das maiores salas da sua carreira. Veio apresentar o seu fantástico segundo álbum, You Are Forgiven, que foi tocado na íntegra, e pelo meio houve espaço para algumas viagens no tempo e momentos para revisitar a sua consagrada discografia anterior.
De onde vem todo este apreço à arte de Slow J, único nome português a actuar na maior sala do Super Bock em Stock? De onde vem o carinho que o público lhe tem, que o leva a permanecer em silêncio num dos grandes momentos da noite enquanto o público entoa a primeira estrofe inteira de “Serenata” a uma só voz? A resposta está na atitude de Coelho, na maneira como reage ao que acontece à sua volta. Nos primeiros momentos do concerto após “Também Sonhar” (e ao longo de todo o espectáculo), era simplesmente incrível testemunhar o olhar genuíno de puro espanto e sorriso rasgado com que o artista mirava o público. Não há mentira, há só um agradecimento emocional e visível, uma honestidade tocante na maneira como se dá ao público. Colhe o que semeia, e os frutos desta relação são merecidamente seus.
Outra das razões é a inventividade do artista. “Arte”, tema estandarte de The Art of Slowing Down, foi interpretado num novo formato, com estrofes mais pacatas acompanhadas por órgãos de igreja e o refrão com a habitual energia possante já conhecida. No entanto, em “Lágrimas” trocou a estética mista de trap e tradicional deste tema para mostrar apenas o tradicional: Coelho chamou o seu antigo professor de música e Francis Dale para o acompanharem respectivamente na guitarra portuguesa e na guitarra. Num ambiente acústico e despido, Slow J destilou o seu coração para todo o Coliseu ouvir. E mesmo quando as coisas não correm bem, há uma tremenda honestidade na entrega. Só à segunda é que foi de vez para “Silêncio” devido a alguns problemas técnicos mas errar é humano e Slow J mostra-o com orgulho. Terminou a música qual Kanye West da tuga, com a voz disfarçada pela distorção mas as suas emoções bem visíveis.
Depois deste tema, Slow J saiu de palco perante um público inconformado. Como resposta fizeram-se ouvir o habitual arrufo de pés do Coliseu e assobios desenfreados, sendo que Coelho assentiu aos seus fãs e voltou para mais uns temas. “Cristalina” voltou a recrutar a voz da audiência e “Vida Boa” acabou a actuação com um estrondo. Seja boa vida ou vida boa, a nossa certamente está melhor com artistas como este nos nossos ouvidos.
Os Viagra Boys são sempre aquele desastre à espera de acontecer. Não aconteceu qualquer desastre, mas sofremos de um punk extremamente contido pela limitação de decibéis do belíssimo espaço da Estação do Rossio. Neste palco, ainda que seguramente um dos mais bonitos, o som deixou quase sempre a desejar, tendo, neste caso, prejudicando tanto a disposição da banda, como a atenção do público. Os Viagra Boys, que já estiveram em Portugal no NOS Primavera Sound, são uma das bandas pós-punk mais interessantes do momento, com um magnífico álbum lançado no último ano – “Street Worms” e que precisamos, urgentemente, de rever num palco que lhes permita ter a pujança que sabemos que têm.
Terminada mais uma edição de festival, chegou a altura de amaldiçoar as filas intermináveis que se foram formando em várias das salas e roermo-nos de arrependimento por ter escolhido este ou aquele artista que no final não valeu assim tanto a pena. Foi uma correria num festival sempre em movimento, e se tudo correr bem (e a forma física o permitir!) para o ano há mais uma maratona musical em que vamos embarcar, a fazer piscinas pela Avenida da Liberdade.
Texto escrito por: Linda Formiga e Miguel Santos