Super Bock Super Rock 2018 (dia 2): hip hop de qualidade para todos os gostos
Foi surpreendente a forma como o Super Bock Super Rock se transfigurou de um dia para o outro. É verdade que o facto de ser um dia especialmente temático, dedicado ao hip hop, trouxe uma plateia mais focada e interessada no género. Para além de estar mais gente no recinto, sentia-se um maior envolvimento nos concertos, e melhor energia entre as pessoas e na comunicação com as bandas. Sentia-se uma ansiedade própria de quem verá, pela primeira vez em Portugal, uma mão-cheia de artistas. É uma aposta ganha: o hip hop é o novo pop, a sonoridade que tem vindo a conquistar todas as referências de toda uma geração. É claro que, dentro do género, houve espaço para várias expressões, radicalmente diferentes: nos espectros mais dissidentes, o jazz rap de Oddisee e o trap de Travi$ Scott – o som e a plateia de cada um era de tal forma distante, que um exercício de detecção do público-alvo de um e outro era possível. E, no entanto, moram debaixo de um mesmo tecto: o das palavras no centro. É essa a alma do hip hop, e foi isso que ouvimos no segundo dia do SBSR – o melhor em termos de cartaz desta edição do festival.
Começámos a tarde em Profjam, rapper português que se fez acompanhar de um DJ e de um baterista ao vivo. O artista, que conta algumas mixtapes lançadas, e singles de elevada popularidade entre a comunidade de ouvintes do hip hop português, planeia editar um álbum ainda em 2018. Certamente, a julgar pelas reacções da plateia que tinha diante de si, será muito bem recebido. Eram seis da tarde, e o espaço do Pavilhão de Portugal que acolhe o Palco EDP estava três vezes mais preenchido do que na véspera à mesma hora. Profjam alternou bangers com temas mais calmos, sempre intercalados por interjeições típicas do DJ. Dos momentos mais fortes do concerto foram os versos acapella, palavras poderosas a um ritmo interpelador e assombroso. Fez-nos arrepiar. Entre o público, maioritariamente gente nova; as quebras de tensão nas filas da frente – e houve várias – atestam a intensidade do momento. Uma promessa do rap português a abrir este dia, que teria muito que dar.
O espaço folgou depois do concerto de Profjam, com muitos dos presentes a preferirem ir reservar lugar para o concerto de Slow J no palco principal, em vez de ficarem a ouvir Oddisee. O rapper de Washington DC fez-se acompanhar de uma banda ao vivo, incrivelmente competente. Seria o primeiro conjunto de surreal nível de qualidade que haveríamos de ouvir na noite. Destaque para o guitarrista, cujo instrumento gostávamos de ter ouvido um pouco mais alto na mistura. A música de Oddisee é uma injecção de paz e positividade, expressão de um hip-hop bem educado (conseguem imaginar um concerto de hip hop em que não detectámos um único fuck ou shit do princípio ao fim do espectáculo?). Lido, pode dar a entender um espectáculo insípido, pouco arriscado. Mas Oddisee esteve muitos furos acima disso. Maestro de um colectivo competente, o músico frequentemente decidia improvisar e pedia à banda para o acompanhar. O teclista também esteve particularmente inspirado, protagonizando alguns momentos de humor que ajudaram a tornar o concerto mais descontraído. Oddisee revelou-nos o jazz rap como arma de paz para um mundo melhor.
No palco secundário das últimas duas edições do Super Bock Super Rock, Slow J cantou que “queria ser como os grandes cantores, dos palcos gigantes, aplausos, vénias e aplausos”. Na sua terceira presença no SBSR, abriu o palco principal do segundo dia do mesmo festival, gigante, mas pequeno para o que se seguiria. Slow J subiu ao palco com uma guitarra, com os parceiros de sempre (Fred Ferreira e Francis Dale) para entoar, com um público que não parava de crescer, “Arte”. Seguiram-se alguns dos temas de The Art of Slowing Down, do primeiro e até à data único LP do músico setubalense; e a dúvida sobre como catalogar Slow J crescem. Ouve-se “mas isso não é hip-hop, rock” e constata-se que a música de Slow Jt em tanto de rock como de hip-hop. Tem tanto de hip-hop como de rap. Tem tanto de ternura como de raiva, de receios, de vulnerabilidades, de sonhos. E os sonhos de Slow J concretizam-se, no estúdio, onde confessa sentir-se no seu melhor a produzir sons, e no palco, assistido por artistas que admira e que o admiram. Richie Campbell foi o primeiro a subir ao palco, para cantar “Water”, tema produzido por Slow J e que foi cantado em uníssono pelo público. O convidado surpresa que se seguiu foi Carlão, o ídolo de Slow J, que colaborou com “um gajo tão talentoso da tuga” no seu último álbum. O restante concerto foi a consagração, com “Serenata” e “Vitória”, culminando com “Mun’ Dança”. “Depois desta vida vai vir a outra” e a desta noite ficou imensamente marcada pelo regresso de Slow J aos palcos.
Depois do turbilhão provocado por Slow J, Luís Severo ocupava o palco LG by SBSR, infelizmente algo afastado dos trajectos das multidões e com poucas pessoas a assistir ao concerto de um dos melhores cantautores nacionais dos últimos tempos. Em formato banda, e não apenas acompanhado do piano como tem sido habitual nos últimos tempos, Severo presenteou-nos com “Cara d’Anjo” e “Meu Amor”, numa sempre perfeita prestação, despedindo-se com “Ainda é cedo”. É sempre um gosto ouvir Severo em qualquer circunstância e lugar – e a breve prestação no SBSR não foi excepção.
Perto da hora combinada, o público começava a concentrar-se mais perto do palco EDP para o concerto de Princess Nokia. A nova iorquina fez a sua estreia em Portugal com pujança e determinação, como a sua música. Os primeiros momentos do concerto foram carregados de energia. Destiny iniciou o espectáculo de forma frenética com os bangers mais mediáticos do seu álbum 1992 Deluxe: “Kitana” deixou os fãs aos saltos e “Tomboy” esteve perto de deitar o palco abaixo. O ritmo fervoroso abrandou com a introdução da nova mixtape da rapper, A Girl Cried Red. Através de temas mais emocionais e que se afastam do espectro do hip-hop como “Your Eyes Are Bleeding” ou “Morphine”, Princess Nokia mostrou o seu lado mais taciturno, ainda que a sua voz de cantora tenha deixado muito a desejar. Pelo caminho houve tempo para a ouvirmos cantar o refrão de “Miss You” dos Blink 182, mostrando que a sua inspiração não vem só do hip hop, e que esta artista tem muito mais para oferecer que umas quantas barras confiantes. Mas essas barras foram indubitavelmente a melhor parte do concerto: “G.O.A.T.” ressoou autoritária e com um apoio avassalador, um dos vários temas que foram abraçados pela audiênci e antes de “Different”, Destiny agradeceu o apoio do público com um beijinho discreto. Logo a seguir explodiu de energia com muito espalhafato. Foi uma estreia com estrondo de uma das vozes emergentes do hip hop norte-americano, e certamente que os fãs mais acérrimos já contam os dias até que Princess Nokia volte a pisar terras portuguesas.
Às dez da noite ia acontecer magia no Palco Super Bock, daqueles momentos de sinergia e comunhão entre palco e público, entre muitos sorrisos e balançar do corpo. O principal responsável: Anderson .Paak. Mas não podemos esquecer a banda que o acompanhava, os The Free Nationals, que expandiu a amplitude sónica até atingir níveis difíceis de expressar. Comecemos por dizer: foi um grande concerto. Anderson .Paak tem no currículo um dos melhores Tiny Desk Concerts da história da NPR. Mas a verdade é que não tínhamos a expectativa de ouvir qualquer coisa parecida, no palco de uma Altice Arena, na qualidade de co-headliner da noite do SBSR. O início do concerto distanciou-se efectivamente desta identidade, com um .Paak extrovertido que não parava de correr de um lado para o outro, numa performance mais típica de um concerto de rap, a que não faltaram bangers para saltar, especialmente “Bubblin’”, o single mais recente do artista que fará parte do álbum que vai lançar, Oxnard Ventura. Mas a partir do momento que o músico se sentou à bateria, que tinha estado até então vazia à sua espera, o concerto mudou de figura – é a diferença que faz uma secção rítmica, de jazz, de intuição, mais humana. Mas o mais fantástico nem foi a destreza de .Paak na bateria – que certamente surgiu como uma surpresa para a maioria do público presente. O melhor foi mesmo o rigor e naturalidade com que o artista cantava com emoção e escacava violentamente a tarola e os restantes componentes do instrumento. O facto de o teclista ter tido um lugar proeminente de destaque à medida que o concerto avançou, também injectou emoção ao todo. Essa é a palavra chave do concerto, emoção. Em tudo o que faz, .Paak destila emoção, mostrou-se genuinamente enternecido pelo apoio do público, cada “Yes Lawd!” proferido a plenos pulmões foi sentido como um triunfo. Foi feitiço, sem dúvida, e mal podemos esperar para ficar embasbacados outra vez.
Enquanto Anderson .Paak terminava a sua exposição de dotes de baterista e música misturadora de géneros, uma modesta multidão ouvia Tom Misch no palco EDP. O músico britânico veio apresentar Geography, o seu relaxado primeiro álbum no qual combina a música electrónica com a música soul numa união prazerosa mas que infelizmente foi mostrada à hora errada: era a banda sonora perfeita para o pôr-do-sol do segundo dia do festival mas o músico tocou a uma hora tardia. Ainda assim, a escuridão que emanava do céu não escondeu as virtudes deste músico: agarrado à guitarra distribuiu malhas açucaradas que cativaram os ouvidos dos mais curiosos, acompanhado por uma banda em sintonia com a sua música e que foi um acrescento de valor à sua actuação, especialmente o teclista, que mostrou a sua habilidade para a improvisação nunca fugindo do ambiente descontraído que se vivia.”Watch Me Dance”, com os acordes inspirados da guitarra de Misch, soaram transcendentes, como se não coubessem debaixo da pala; exigiam, contudo, uma receptividade mais atenta e silenciosa por parte da audiência. Foi uma boa paragem para relaxar antes de Travi$ Scott deitar a Altice Arena abaixo, um descansar ao ar livre patrocinado por Misch e a sua música de Verão que se crê infinito.
Voltamos ao palco LG by SBSR para os Ermo para a pop electrónica a que nos habituaram. O tardio da hora e o vento que se fazia sentir naquele ponto, pouco protegido do vento pela Altice Arena, fizeram com que pouco mais de cem pessoas se juntassem para os ouvir, algo injusto para a banda de Braga que, principalmente após a edição do último LP Lo-Fi, Moda nos tem mostrado do melhor que tem havido na pop electrónica portuguesa. Um concerto intenso que teria merecido um lugar de maior destaque na programação do dia – embora seja compreensível que a plateia, mais focada para o hip hop, pudesse dar preferência a outros concertos mais ao seu estilo.
“Estou todo partido”, ouvia-se à saída do concerto de Travi$ Scott, uma reacção perfeitamente adequada àquele que terá sido para muitos o melhor espectáculo deste segundo dia do Super Bock Super Rock. A actuação de um dos rappers mais mediáticos da música trap norte-americana foi uma explosão de energia, baixos ribombantes e auto-tune melódico. À semelhança de Future na edição do ano passado, La Flame disparou música atrás de música, parando pouco tempo em cada uma e deslizando com naturalidade por entre os vários hinos que o popularizaram, numa torrente de temas que deixou a dançar uma MEO Arena completamente cheia e rendida aos encantos do artista. Mas ao contrário de Future, Scott mostrou-se mais do que presente, sem a letargia desse artista e sem a sua atitude desinteressada, apresentando uma entrega muito mais frenética e uma actuação muito mais ambiciosa, ecoando a energia do público na sua cadência esmagadora, provando que a música trap ao vivo está de boa saúde e recomenda-se a qualquer fã do género, ou simplesmente a qualquer um que goste de saltar com entusiasmo e abanar a cabeça ao som de 808’s ensurdecedores. As qualidades do artista como frontman transpareceram fielmente ao longo de todo o concerto, apoiado por um espectáculo de luzes e pirotecnia que arrancou assobios e provocou o espanto da audiência. Percorreu os vários projectos que assinou ao longo dos anos sempre com um ritmo incansável. Ouviram-se músicas mais recentes como “Butterfly Effect” ou “Watch” de Astroworld, projecto que irá lançar em breve, mas os seus trabalhos mais antigos não foram esquecidos: Days Before Rodeo foi representado por “Mamacita” e celebrada da melhor forma possível e Rodeo convidou o público à dança com “902010”, “I Can Tell” ou a efusiva “Antidote”. No fim ouviu-se “Goosebumps”, talvez a música mais aclamada de todo o concerto. Foi uma versão mais curta desse tema de batida hipnotizante mas para ouvir a original temos as colunas em casa. Estávamos ali era para ver o artista, e sem dúvida que o rapper cumpriu, apresentando o trap norte-americano em Portugal de forma digna e entusiasmante.
A festa segue hoje, no Parque das Nações, com concertos de Julian Casablancas & The Voidz, Benjamin Clementine, Stormzy, e um espectáculo performático dos La Fura dels Baus.
Reportagem de Linda Formiga e Tiago Mendes, com a contribuição de Miguel Santos, fotografias de Sofia Rodrigues.