‘Support the Girls’ é o retrato de uma resistência
Andrew Bujalski surgiu na cena indie americana há 16 anos com o filme Funny Ha Ha (2002), uma das obras inaugurais do movimento mumblecore, que propunha um cinema de baixo orçamento onde o diálogo é visto como instrumento de exploração das relações interpessoais ao invés de motor da construção de um enredo. Daqui resultaram filmes mais próximos das pessoas, tanto a nível ideológico, como de produção. Hoje em dia, muitos dos nomes que se afirmaram nesta época contam com produções maiores (para cinema e televisão) e caras mais conhecidas nos elencos, embora muita da sua filosofia se tenha mantido inalterada.
Tal é o caso de Support the Girls (2018), o mais recente filme de Bujalski, que conta um dia na vida das trabalhadoras do Double Whammies, um restaurante do género da cadeia americana Hooters, onde empregadas de mesa vestidas sensualmente servem a uma clientela maioritariamente masculina hambúrgueres e cervejas, com especial foco na sua gerente, soberbamente interpretada por Regina Hall.
Esta personagem navega o espetador pelos conflitos que surgem no estabelecimento, todos eles de uma forma ou outra enraizados na vida pessoal de alguma das trabalhadoras. Estes tocam em vários tópicos de importância social como feminismo, racismo e direitos de trabalhadores, mas nenhuma personagem não é símbolo senão de uma pessoa, nunca de uma ideia. Cada personagem contém nas suas idiossincrasias perguntas no lugar de respostas, sendo a crítica na maior parte dos casos implícita e advém quase exclusivamente da escolha da história a contar, pois Bujalski limita-se a olhar os procedimentos sem exagerada dramatização ou vitimização, dois dos pilares de um certo tipo de filme de Hollywood “militante”. Aliás, este modelo é muito bem subvertido na medida em que Support The Girls recusa-se a tomar uma posição didática perante o seu público: o seu comprometimento é para com a justeza do retrato das suas personagens e dos seus problemas, não lhes retirando nenhuma da sua devida dignidade. Quando ouvimos uma empresária descrever como toda uma equipa de advogados preparou um sistema que promove uma cultura de respeito de modo a que as raparigas não tenham de tratar disso, colocando a descoberto o paternalismo que permeia certas alas da luta pelos direitos da mulher, não temos outra hipótese senão partilhar o desconforto evidente na cara de Hall, que permanece muda.
Existe uma muito inteligente observação do conflito entre agentes individuais e os sistemas dos quais fazem parte, em particular o sistema capitalista. Há uma tentativa de subversão da hierarquia que carateriza o restaurante – o dono, que percebemos ser alguém largamente distante do quotidiano do seu estabelecimento, a gerente e as restantes trabalhadoras – onde ordens vindas de cima são cuidadosamente contornadas, tanto quanto possível, na tentativa de criar um espaço de maior liberdade, sem perturbar demasiadamente a ordem. O filme detalha uma procura de uma linguagem genuína num mundo de universal codificação simbólica segundo o capital – mesmo nos momentos mais íntimos, existe sempre uma ligação de volta ao emprego das personagens e às obrigações que este impõe.
Este conflito é muito bem demonstrado através da utilização do espaço cénico nos últimos minutos do filme: durante a revolução que é levada a cabo no restaurante, os seus espaços adquirem novos significados, sendo assim reinventado segundo uma encenação bastante caótica, ao que se segue a opressão da estreiteza dos corredores de escritório – a perturbação criada, ultrapassando o ponto de equilíbrio, causa uma resposta no sentido inverso. Mas, como, escreve Saramago, “as esperanças tem esse fado que cumprir, nascer umas das outras, por isso é que, apesar de tantas deceções, ainda não se acabaram no mundo”, de novo saímos para a rua, sendo aí que Bujalski termina o seu filme, no espaço mais amplo onde qualquer personagem está presente durante toda a obra, criando um enorme contraste com a cena precedente.
O único defeito que poderemos apontar ao filme é que alguns aspetos da sua conceção traem o conceito. O facto de haver uma personagem guia, como já se referiu, a gerente interpretada por Regina Hall, torna a obra excessivamente concentrada numa única pessoa, descurando a visão do coletivo que pretende ser transmitida. Para tal efeito, seria preferível ver as personagens secundárias dotadas de maior independência. Do mesmo modo, a estrutura temporal instalada, isto é, o facto de o grosso do enredo tomar lugar num único dia, substitui uma observação cuidada por uma concentração excessiva de eventos quase anedótica – de facto, na sua crítica, Mike D’Angelo aponta como o filme se assemelha à junção de uns primeiro e último episódios de uma sitcom. Estes aspetos, contudo, não desvalorizam todas as vitórias que a obra alcança.
Poucos filmes são feitos que se encontram tão em sintonia com a sociedade na qual são lançados. Support the Girls é um desses filmes, igualmente próximo da experiência individual como dos grandes temas, porque, de resto, estes são inextricáveis. Este é, assim, pela sua incisiva politização do quotidiano, um extraordinário retrato de uma resistência.