Susana Baca carrega na voz o legado de um povo
No ano em que celebra 50 anos de carreira na música, Susana Baca regressou a Lisboa para o primeiro de três concertos que dará em Portugal (os próximos serão dia 6, em Espinho, e dia 7, em Braga). O mote da digressão é a apresentação do seu mais recente disco, Palabras Urgentes, lançado em 2021, no qual prossegue com a sua missão de espalhar a história e palavras da comunidade afro-peruana. Os descendentes de escravos africanos levados para o Peru cunharam um estilo de música único, de veia activista e de defesa dos direitos humanos, algo perfeitamente representado na carreira de Susana Baca — que também foi professora e ministra da Cultura do Peru — e na sua voz singular.
Foi essa voz que levou algumas centenas de pessoas ao Teatro Tivoli, em Lisboa, para um concerto em que a música e história foram completamente indissociáveis. Acompanhada de seis músicos, Susana Baca entrou em palco ao som de uma chuva de aplausos. A primeira coisa que fez foi tirar o suporte de microfone da sua frente, empunhando o microfone ao longo de quase todo o concerto, transmitindo um à-vontade e proximidade com a música que cantaria. A sua voz tem uma vulnerabilidade característica, com um vibrato natural que impregna de emoção cada harmonia. Apesar dos seus 78 anos, mantém-se intacta, oscilando em tom entre a sabedoria de uma anciã e a inocência de uma criança.
De sorriso gentil e de orelha a orelha, Susana apresentou quase todas as canções do alinhamento, que homenagearam maioritariamente artistas peruanos, mas também uma outra grande personagem da negritude brasileira: Milton Nascimento. “Portal da Cor” foi a canção oferecida ao público português, pela língua que partilhamos com o Brasil e pela mensagem de paz que as suas estrofes transmitem.
Ouvimos algumas das canções mais antigas dos afro-peruanos, como “Golpe E’ Tierra”, descrita como uma “canção de solidariedade”, e “Molino Molero”, canção já cantada pelos escravos. Este estilo de origem claramente africana soa várias vezes aos géneros musicais clássicos de Cuba, mas temperados com uma sensibilidade desértica e o inconfundível som do cajón, instrumento originário do Peru, tocado por escravos africanos que, separados dos seus instrumentos de percussão, fizeram-se valer de caixas de madeira e gavetas para os substituir. A clássica canção “Toro Mata” também não podia deixar de marcar presença, com o seu ritmo comandante e letra partilhada com o coro de voz grossa.
Um dos nomes mais ouvidos ao longo do concerto foi o da icónica cantora e compositora Chabuca Granda, dado que o seu legado é inseparável da cultura afro-peruana. Ouve-se “La Herida Oscura” e “Canterurias”, canção dedicada aos pedreiros que lavram as pedras para as construções e transposta para a nossa realidade, que todos os dias “lavramos a nossa vida”, nas palavras de Susana.
Mas não só artistas são reverenciados na música de Susana Baca. “Juana Azurduy” honra a militar indígena que permitiu a libertação da América Latina na luta contra o jugo espanhol. Cantando directamente para ela, diz-lhe “No hay capitán más valiente que tú”, honrando o trabalho das mulheres na construção da nação que Susana tanto ama.
Da sua faceta mais activista apresenta-nos “Cambalache”. Canção adaptada de uma outra canção centenária, a letra faz referência à corrupção e mentiras dos governantes, com acenos a personalidades tão actuais como Donald Trump, Marine Le Pen ou o ditador peruano Alberto Fujimori (e sua prole, que continua a tentar dominar o cenário político do país). Para deixar uma mensagem de resistência, canta-nos ainda “Latinoamérica”, canção dos porto-riquenhos Calle 13 à qual emprestou a voz, repetindo o poderoso mote “No puedes comprar mi vida”.
No final, os agradecimentos seguiram-se em catadupa, desde os músicos aos técnicos de som, produtores do espectáculo e à promotora, que teve a “bela ideia” de voltar a trazer Susana Baca a Portugal. “Agora vamos a Espinho e a Braga e não vamos querer ir embora”, brinca. Por mais bonito que isso fosse, sabemos que, para continuarmos a ouvir Susana Baca na sua plenitude, é essencial que regresse ao seu querido Peru, aonde também nos levou com este concerto e aonde nos continuará a levar a sua música.