“Synonymes” pede que dêmos um passo atrás
O estrépito de um meteoro no meio de Paris. Yoav, israelita, vira as costas à sua pátria e aterra no hexágono com uma só mochila, que rapidamente lhe é retirada. Felizmente, um jovem casal burguês encontra-o e ampara a sua chegada. Como bons franceses, dão-lhe roupa, um telemóvel, toalhas e dinheiro. A estes objetos, Yoav ade uns outros, de caráter mais simbólico: um dicionário Larousse e um trio de postais, de Kurt Cobain, de Vincent Van Gogh e, claro, de Napoleão Bonaparte. Tal como Susan Sontag descrevera sobre as fotografias de criminosos que Jean Genet colara na parede da sua cela aquando da escrita de Notre-Dame-des-Fleurs, “elas serviam como suas modelos, musas, talismãs eróticos”- “Não se pode possuir a realidade, pode-se possuir (ou ser possuído por) imagens”. A leitura psicológica deste gesto esboça desde logo a autoprojeção do recém-chegado e atesta a sua determinação na integração gaulesa.
A terceira longa-metragem de Nadav Lapid é, também ela, uma partida. Geográfica, evidentemente, espelhando o percurso de Yoav, e formal, sendo Synonymes (2019) uma inesperada mostra de agitação e estilização sem precedentes na obra do israelita, que, até ao presente, quer em formato longo como, e especialmente, curto, tem tido patente, invariavelmente, um questionamento sobre o estado israelita e sua cultura. Porém, o olhar era distante e contemplativo, crítico. A perspetiva neste vencedor do Urso de Ouro é notavelmente nova, pois o seu protagonista está ciente da problemática e, por isso, encontra-se em conflito com a sua identidade nacional. O desassossego que assim assola o percurso de Yoav traz ao filme uma componente sentimental incaraterística de filmes que lidam nesta dimensão hermenêutica, mas que, por não pouca habilidade, em nada interfere com o aspeto crítico da obra. Ademais, um motivo recorrente de cenas exteriores consiste na simulação por parte da câmara da tomada do ponto de vista do protagonista do filme, seguida da revelação, ao rodar sobre o seu eixo, da deslocação espacial entre si e o ator, reiteradamente sublinhando a nossa distância de Yoav e a sua inadequação ao meio. Uma câmara irrequieta para uma história inquietante.
Em discussão após a apresentação do filme no Indielisboa, Lapid invoca a personagem de Cândido para esquadriar os momentos iniciais do filme. Yoav acredia ter chegado ao direto antónimo do seu país natal, a um território onde, por fim, saboreará a liberdade, a igualdade e a fraternidade, e assim parece ser ao primeiro contacto com Caroline e Émile, seus salvadores, interpretados por duas estrelas em ascensão do cinema francês (Louise Chevillotte, de L’amant d’un jour (2017), e Quentin Dolmaire, protagonista de Un Violent Désir de Bonheur (2018), incompreensivelmente ainda não projetado em Portugal). Há a partilha de música e de histórias, em que Yoav agita o quotidiano displicente de Émile, e um sentido de solidariedade e cumplicidade em que os três se banham.
Contudo, ao longo de uma construção relativamente episódica, percebemos que, não obstante a sua recusa a falar hebraico, o papel de imigrante dificilmente pode ser abandonado. As perspetivas laborais apresentam-se limitadas: enquanto guarda na embaixada israelita, Yoav bate-se com a cultura que tanto despreza, a camaradagem reacionária, violenta e anedoticamente máscula dos seus colegas traz à memória algumas das cenas do estelar Ha-shoter (2011), sendo com serena indolência que ele olha de cima as suas lutas e mirabolantes comportamentos. Simultaneamente, enquanto modelo pornográfico, é forçado a pronunciar-se na língua excomungada, coagido pela lucrativa e perversa coisificação imagiológica do corpo estranho. Por fim, em aulas de cidadania francesa, Yoav aprende a língua e a cultura francesas, os símbolos da república, a laicidade, “A Marselhesa”, mavórtica e tenebrosa, e como estes princípios se refletem paradoxa e hipocraticamente na vida prática. Numa sequência icónica, o israelita entra numa boate e a custo atravessa um espesso bosque de pernas dançantes para chegar à cesta do pão. Incapaz de manter a sua posição, levanta-se a junta-se à festa, aderindo aos comportamento e identidade grupais, a cada passo dando mais uma trinca. Para lá do todo, uns lutam contra a piteira, outros lutam pelo pão. Yoav está novamente, em França como o estava em Israel, sufocado pelo Estado e pela Nação.
Até que estala. A violência acumulada enfim torna-se insuportável e desperta nele algo que se tinha por esquecido: a sua soberba e o seu militarismo. Este momento é marcado pelo pedido de retorno das suas histórias a Émile, a quem as havia cedido. É curioso notar a aura proustiana subjacente ao facto de este episódio ser despoletado pelo vestir de uma farda militar israelita, para mais um biscate pornográfico, desta feita com uma rapariga “palestiniana” (a propósito desta situação, de novo invocamos Sontag: “E tal como até na realidade mais medonha ou de aparência mais neutra um imperativo sexual pode ser encontrado, também o mais banal documento fotográfico pode tornar-se num emblema de desejo.” – a violência perpetrada pelo sionismo é aprofundada por agressões simbólicas). Yoav insurge-se então contra os seus obsequiadores hospedeiros, em nome da França, contra a libertinagem e a decadência da vida urbana, debitando os conteúdos lecionados nas aulas de cidadania. O “galo israelita”, híbrida formação de jactância e nacionalismo, fica, na intensa última cena, trancado do lado de fora. Assim excluído, o vigor com que tenta arrombá-la ilustra o espírito torcionário que sempre o projetou e, de certa forma, explica a larga falta de concretização sobre a problemática israelita e a ausência de soluções aparentes: Synonymes pede que dêmos um passo atrás, para ver como toda a nação é uma estrutura muralhada onde nem todos conseguem entrar.