Tailândia. Não-lugar como casa

por João Tamura,    22 Novembro, 2022
Tailândia. Não-lugar como casa
Fotografia de João Tamura
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João Tamura nasceu em Lisboa, nos anos 90. É músico, poeta e fotógrafo. Partiu, em setembro de 2022, numa viagem sem data de regresso ou destino definido. “Não-lugar como casa” em referência ao conceito de “não-lugar”, criado pelo antropólogo Marc Augé — é a série de crónicas que documentam essa viagem, numa simbiose entre as suas linguagens prediletas — a prosa e a fotografia analógica.

Jet lag. O barulho dos carros lá fora; da chuva a cair nos telhados; da voz num quarto distante, ao fundo do corredor. Quatro da manhã e quem me dera adormecer. 

Ligo a televisão e passam os resumos da mais recente jornada da liga de futebol tailandesa. O Chonburi perdeu, em casa, com o Bangkok United. O Ratchaburi FC e o Chiang Rai United empataram. O Buriram United, campeão da edição anterior, lidera o campeonato e encontra-se em boa posição para revalidar o título. Cinco da manhã e quem me dera adormecer.

— Não deveríamos colocar a roupa para lavar?

Vestimos as primeiras peças que encontramos e cambaleamos escadas abaixo. Inserimos 40 baht na máquina de lavar e o tambor roda, e roda, e roda. Depois, 30 baht na máquina de secar e o tambor roda, e roda, e roda. Jet lag e o corpo entre dois lugares. Jet lag e a cabeça roda, e roda, e roda. Seis da manhã e quem nos dera adormecer.

Fotografia de João Tamura

Bangkok: conheço bem este lugar, de passagens anteriores. Desta vez há menos gente nas ruas, menos turistas no metro. Há mais bancas fechadas, mais lojas entaipadas. Bangkok tem cheiro: cheiro a roupa lavada, a erva-príncipe, a galanga cortada. Cheiro a terra molhada, a sumo de pitaia e a calor que não acaba. Os dias desfilam, fugazes. Escapam-nos por entre os dedos como areia. As noites, pelo contrário, parecem-nos infinitas e podemos tudo nelas. Caminhamos sem destino, sob os néons em Sukhumvit ou junto às margens do Chao Phraya; caminhamos sobre o asfalto molhado dos becos de Khlong San e por entre os prédios de Khlong Toei, onde as varandas se enchem de parabólicas, de roupa estendida, de plantas e de vasos. Caminhamos até as pernas nos pesarem em demasia e até o cansaço nos guiar de novo a casa. Adormecemos quando Morfeu assim nos ordena, sobre este colchão velho e gasto, que nos magoa as costas, o pescoço, os ombros. Bangkok tem cheiro, e eu conheço-o bem. Como tantas outras coisas, este esconder-se-á numa gaveta recôndita da memória e só o reencontrarei quando aqui regressar.

Fotografia de João Tamura

Demoramos 13 horas até Chiang Rai — viajamos de autocarro para pouparmos dinheiro. Para combater o tédio, e porque estes assentos não permitem o sono, lemos os cabeçalhos dos jornais portugueses: “Inflação a níveis históricos. Um peso desproporcional para as famílias mais vulneráveis”; “População portuguesa está mais pobre e a ficar para trás”; “Pedidos de ajuda alimentar aumentam em Portugal”. Estas palavras afundam-se como pedras, peito adentro. Telefono ao meu pai:

— Esquece isso, quando voltarem já as coisas melhoraram. Temos que ser otimistas!

Finjo sê-lo e passamos a tópicos que nos confortam; os mesmos que, em noites lisboetas, regavam as nossas conversas no Cabeça de Touro ou no Flor do Minho: “Então, tens falado com a mãe? Conseguiste ver o Benfica, ontem? O Schimdt está finalmente a pô-los a jogar à bola, ou não?”. 

Rimos em uníssono, pontapeio as minhas incertezas, mascaro o meu pessimismo, até o Skype nos cortar a chamada. Um abraço, pai.

Fotografia de João Tamura

No norte, as noites são mais frias — convidam-nos a redescobrir as roupas esquecidas no fundo das nossas malas. Sentados em bancos de plástico, à beira da estrada, devoramos pad thai (1). As scooters, os carros, e os songthaew (2) rasam os nossos corpos, mas os condutores seguem impávidos, com uma confiança inabalável na sua destreza e agilidade.

— Tuk-tuk?

Abanamos a cabeça em negação; sorrimos e sorriem-nos de volta. Decoramos expressões chave: “sawadee” e “kawp koon” — Olá e obrigado; “chai” e “mai” — sim e não; e, claro, “phet mak mak” — pois a Sara gosta de picante com comida, não de comida com picante. Praticamos o “wai”, o ritual de juntar as mãos à altura do peito, em forma de “obrigado”, “perdão”, “olá” ou “adeus”. Penso que também o nosso abraço, consoante a sua intensidade e duração, pode ter a forma de “obrigado”, “perdão”, “olá” ou “adeus”. E quem me dera que, antes de partir, tivesse abraçado os meus pais por mais tempo e com mais força.

(1) – Pad thai é um dos pratos mais populares da gastronomia tailandesa. É cozinhado numa wok e, apesar das muitíssimas variações e interpretações, é usualmente composto por noodles de arroz reidratados, tofu fatiado, ovo, camarão, amendoim, rebentos de feijão mungo e lima.

(2) – Sowngtaew são táxis partilhados — com ou sem rota definida — adaptados de carrinhas pick-up: a caixa aberta é coberta por um telhado e dois bancos compridos são fixados em cada um dos seus lados.

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