Também eu traí Guterres – o homem por quem temos esperança
Hoje, em Nova Iorque, António Guterres assume a liderança do combate pela defesa do planeta e pelo futuro da humanidade. De uma maneira simples, é isto. Tão somente isto e tudo isto. Um combate difícil e complexo contra a forma como o planeta está alicerçado, contra o modo de vida a que nos habituámos.
O tempo é diminuto para o que há a fazer. E António Guterres, secretário geral das Nações Unidas, jogou todas as cartas nesta Cimeira da Ação Climática, encontro que antecede a 74ª Assembleia Geral da ONU. Será hoje, está a acontecer neste momento e Guterres não se limitou a apelar. Neste encontro todos os países que assinaram os acordos de Paris terão de se comprometer com políticas concretas e não apenas com palavras. O mundo a partir de agora saberá quais os políticos e países que não estão comprometidos. E António Guterres ameaça colocar pressão nos que apenas prometem sem nada fazer. Ou nos que recusam a possibilidade de qualquer acordo. Como Estados Unidos, Japão e Brasil que hoje deixarão as suas cadeiras vazias.
Deixem-me falar um bocadinho de António Guterres. Hoje é o seu dia, o dia em que dá início a uma “guerra santa” contra a ignorância, a estupidez e a ganância. Pode acontecer que António perca a batalha, mas de uma coisa estamos certas se ele a perder serão os nossos filhos e netos a pagar o preço de um mundo que passará a ser um escombro.
António Guterres é um dos melhores portugueses. Mesmo nas suas derrotas, mesmo nas suas fragilidades, nunca deixou de ser um dos melhores. Ouvir ao longo dos anos tantos medíocres falarem sobre Guterres como se estivessem ao seu nível, como se ele fosse estúpido, fraco ou incapaz, diz muito deste tempo em que toda a gente julga que é importante.
Ouvir o que escreveram e disseram de Guterres quando se demitiu de primeiro-ministro – que teve falta de coragem, que não sabia como liderar, que era incompetente para ser primeiro-ministro de um país Portugal.
Ouvir as gargalhadas quando tropeçou nos números (lembra-se?), o que foi ridicularizado, imagens repetidas vezes sem conta (sabendo muitos que António vivia um drama pessoal com a doença da sua primeira mulher, Luísa Guterres).
Ouvir o modo como tantos relativizaram o extraordinário feito de ter sido o escolhido para secretário-geral da ONU. Falavam das entrevistas e das várias provas de seleção como se fosse uma coisa normal, como se fosse um sacrilégio enaltecer um português, como se um comentador não pudesse dizer bem de alguém com o medo de ficar comprometido entre os seus. Quem é respeitado tem de ser suficientemente cínico, é assim que as coisas são. E sim, na boca de muitos dos que escutei parecia uma coisa sem grande importância, o homem ganhara o lugar por falar bem e por ter uma diplomacia competente por trás.
Também eu falhei. Quando António se demitiu aceitei fazer parte da comissão de honra do seu sucessor no Partido Socialista – um dos últimos convites políticos que aceitei. E num discurso na antiga FIL levei a sala a premiar-me com aplausos sinceros: “Temos agora um líder corajoso, um líder que nunca falhará ao país, que nunca falhará na coragem”, afirmei. Tinha estado com Guterres algumas vezes, conversas abertas em que mostrou confiança nas minhas opiniões e nas minhas perguntas. Traí a sua confiança porque, no fundo, talvez quisesse ser aplaudido. Ou ser deputado, sinceramente não sei.
Passaram muitos anos, quase vinte. A vida oferece sempre ferramentas que podemos tornar úteis. Depende sempre do que fazemos com elas. E meu caro António, o seu combate é o combate dos que acreditam ser possível o impossível. E não me esqueço do que me disse na nossa última conversa, da “parábola dos talentos” – devemos sempre respeitar o que somos e nunca desaproveitar as oportunidades que a vida nos dá.
O mundo está ligado a si, António. Não desaproveite a oportunidade que a vida lhe ofereceu. Eu ficarei por aqui e farei o melhor que souber e for capaz, de acordo com as minhas possibilidades. Que cada um faça o mesmo. António, muito obrigado por ser luz.