Tascoismo

por Leonardo Cruz,    29 Agosto, 2022
Tascoismo

No romance/farsa psicadélica “Vício Intrínseco” de Thomas Pynchon, o detetive privado/stoner público Doc Sportello reúne-se com o advogado Sauncho Smilax no restaurante Belaying Pin, em San Pedro, um bairro de Los Angeles. 

“A julgar pelo cheiro que o atingiu mal entrou, Doc não classificaria o Belaying Pin como um dos restaurantes de marisco mais preocupados com as condições sanitárias”.

A empregada de mesa, Chlorinda, atende aos pedidos de Doc e Sauncho recorrendo a sarcásticos comentários tais como “o estômago é seu”, ou “se o meu marido se atrevesse a comer uma que fosse destas merdas, punha-o no olho da rua e (…) ainda levava nos cornos com a coleção inteirinha de álbuns dos Iron Butterfly que ele para lá tem”.

A moça acaba, no entanto, por aconselhar algo aos seus clientes: “E para beber, cavalheiros? Vão por mim, o melhor é estarem já bem entornados quando esta coisa chegar à mesa” — “esta coisa” sendo o pedido.

Este episódio da história de Doc Sportello (também abordado, embora resumido, na versão cinematográfica de Paul Thomas Anderson) ocorre na Califórnia dos anos 70 do século passado.

Restaurantes onde a combinação “comida má e empregados antipáticos” porventura apenas resistissem no tempo durante aquela era, na qual a clientela apresentava habitualmente o sistema endocanabinóide de tal maneira estimulado por THC estava tão ganzada, que comia qualquer porcaria. Hoje em dia, o nível de exigência dos clientes é outro, e até as tradicionais tascas se converteram em bistros modernos de cariz gourmet, que pouco refletem a sua aura original. O mármore branco dos balcões, no qual os “copos de três” escorregavam como num jogo de curling proporcionando rastos de belo contraste cor do vinho tinto entornado, foi sendo substituído por outras pedras ou madeiras exóticas. Chão de terra? Pura e simplesmente proibido. Os pratos passaram a ser apresentados com mais cuidados, mas, felizmente para todos nós, a gastronomia não perdeu qualidade. Até porque o suposto upgrade às tascas não foi alargado ao país — sim, a nação evoluiu qualquer coisa nos últimos quarenta anos, sem dúvida, mas ainda está cheia de gulosos portugueses, passe a redundância; como tal, continua sendo o melhor país para se comer. Bem, quero dizer, comer bemO melhor país para se comer bem.

Felizmente ainda subsistem algumas tabernas típicas, cada vez mais difíceis de encontrar. E nalguns sítios a comida é tão boa que os donos dos estabelecimentos que a servem dão-se ao luxo de ser genuínas bestas.

(Talvez tenha sido num desses locais que Jerry Seinfeld ou Larry David se inspiraram para a sua personagem “Nazi das Sopas”. “That’s gold, Jerry”, mas isto aqui é Tugalândiamy friend; a Lusitana Paixão é por TODA A CULINÁRIA. Não são só as sopas, perdoem-me a aliteração augada — é tudo!).

Um amigo contou-me uma história passada numa casa de pasto, no sul do país, que tem como nome um dia da semana e que fica numa rua com a designação de uma das estações do ano; e mais não digo. Aí um inocente cliente, na primeira vez que visitou o espaço, teve a ousadia de perguntar “se, por acaso, não havia um peixinho”. A resposta do proprietário foi rápida e seca: “espera lá que já o mamas!”. O restaurante, apesar dos desaforos do responsável, costuma estar cheio; come-se bem, não é caro, mas a ementa não é escolha do cliente.

Num desses locais que se distingue pela dicotomia refeições sublimes/atendimento execrável luto constantemente com o próprio orgulho: acabo sempre por lá almoçar ou jantar apesar de ser enxovalhado pelo tasqueiro que me avisa amiúde — “não sei se mereces o que tenho aqui hoje”. Volta e meia insulta-me se não consigo acabar com o tacho (é esta a unidade de medida, repare-se, não estamos a falar de “prato” ou de “dose”, ok?). Caso eu deixe no prato as gorduras da carne, utiliza todo um naipe de figuras de estilo para me vilipendiar. As mais comuns são o oxímoro, como em “granda menino” ou o pleonasmo — “vá, engole para dentro!”. Já o vi fazer piretes nas costas de um cliente que reclamou de algo (ou teve o desplante de colocar alguma questão), pelo que presumo que também já o tenha feito nas minhas. No balcão de atendimento, junto às garrafas de bagaceiras e whiskys baratos, pode ler-se numa pequena ardósia a expressão “cuidado com o dono” — estamos falados quanto a avisos legais.

Certa vez, convidei um grupo de amigos para lá jantamos, e pedi ao senhor que falasse um pouco sobre o que nos iria ser servido — por norma é uma iguaria que não se encontra noutras casas. Ignorou-me como se eu falasse uma língua estrangeira e passei por totó ao pé dos meus convidados (por sorte já me conhecem há muitos anos e sabem que sou mesmo totó). Quase jurei ser a última vez que punha os dentes naquele lugar. Até que chegou à mesa a canja de garoupa que só ali tive a felicidade de saborear. Pois, é que por detrás de um tasqueiro ranzinza há sempre uma supimpa cozinheira.

E todos os clientes que ali engolfam a sua autoestima apenas o fazem pela certeza que, de seguida, chegará um maravilhoso repasto que compensará a prévia azia. Autênticos servos da gula, escravos da opsofagia, reverentes lambões que aguentam o fardo porque sabem que algo de bom virá. No fundo, optam por não responder às provocações enquanto desfrutam do melhor que a vida tem para oferecer. Se eu alguma vez imaginaria que era através da rabugem destes diabólicos taberneiros, equilibrada yin-yangmente por manjares celestiais, que eu, ateu convicto, chegaria até esta espécie de taoismo. Um taoismo de tasca, um… (não, não vou fazer um neologismo parvo juntando as duas palavras, seria demasiado idiota, estragaria o texto mesmo no final que até tinha começado tão bem, espera, afinal vou), um tascoismo.

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