Temos de nos habituar que nada está garantido
Li algures que permanecer de braços cruzados em tempos de populismo é ficar do lado errado da história. O estímulo à ação tem razão de ser: é um dever dos democratas lutar contra tudo o que sejam tentativas de mitigar ou destruir o Estado de Direito, as liberdades e as garantias nele previstas.
O problema está em que muitas dessas tentativas, para se revelarem eficazes, são mais ou menos dissimuladas; e assumem várias formas, também. Uma delas, por exemplo, é a negação de factos e o aceno com o que ficou conhecido por fake news. A expressão “notícias falsas” até é um paradoxo (se é uma notícia é assente em factos e os factos são-no por serem verdadeiros) mas certo é que pode ter consequências desastrosas: na inversão sentido de voto por revoltas sustentadas em mentiras.
A mentira, escancarada ou encapotada, é um recurso comum dos populistas, criadores de narrativas adequadas à destruição do pensamento próprio e individual.
Para quem sabe, ou consegue descortinar essa natureza falaciosa, não basta desmentir as notícias e as falsidades em que se baseiam — há que desmascarar o populismo, o racismo e a intolerância que ingenuamente alguns achavam que a Portugal não chegaria ou que por cá não existia.
Estes golpes no Estado de Direito são mais ou menos dissimulados porque o grau varia da capacidade de análise e mundividência de cada um. E é aí que entra o dever dos privilegiados — o dever de quem tem a capacidade de decifrar esses atentados à democracia.
A intolerância é outro argumento bandeira destas organizações que querem acabar com a liberdade. Intolerância com etnias, com preferências conjugais, com quem erra, com quem falha.
O dever dos privilegiados é o de não poder ficar calado perante estas atrocidades. De ser intolerante com os intolerantes. O dever de garantir que os nossos direitos e valores não se esfumam em prol de assuntos que apelam aos nossos instintos mais básicos; como achar que deputados ganham muito ou que o RSI é dinheiro mal aplicado, tanto pelos cidadãos, como contribuintes, como pelo Estado, como agente redistributivo.
Relativizando ou não as sondagens, dizendo ou não o nome dos extremistas, temos o dever de denunciar, protestar e explicar. Apontar incongruências, falácias, erros ou afirmações inverificáveis. Entender a revolta de quem se vira contra o sistema mas explicar que o inverso não é a solução — pelo menos, aquela que os mais vociferantes defendem.
Infelizmente, não é preciso ir muito longe para encontrarmos razão de exercer o nosso dever. Seja à mesa com a família, no café com os amigos, na caixa de comentários com desconhecidos… é nosso dever lutar pela democracia. Sempre.
Lutar pela democracia passa também por ter uma abordagem pedagógica em detrimento de um simples e irresponsável ignorar.
A pedagogia é necessária porque não é assim tão óbvio para quem tem preocupações mais urgentes e diárias, como saber como vai pagar a renda ou alimentar os filhos, decifrar mentiras. Não é essa a sua preocupação maior. Também não é óbvio perceber estes ataques para quem não teve o privilégio de aprender a navegar na internet e que sabe que “o Facebook” não é autor notícias.
Por outro lado, há quem se contente em não sair da bolha da realidade alternativa ou de espirais falaciosas. Esses acham que essa a melhor política para as suas vidas. Para eles, os factos devem chegar: os partidos autoritários têm programas que na verdade não precisam de grande interpretação – os textos são literais e castração significa mesmo castração.
Cabe aos defensores da liberdade apontar para o retrocesso civilizacional que tais medidas acarretam; explicar matérias que não nos são habituais é passa a ser nosso dever: o sistema prisional funciona numa lógica de reeducação e reinserção, não de castigo ad eternum.
A propostas autoritárias respondamos com informação e empatia. A tempo de antena perigosos, argumentos válidos e irrefutáveis. A entrevistas de fascistas, capacidade para desarme ideológico.
Lutar por fazer entender que conceitos básicos e fundadores da nossa democracia, como a dignidade humana, a igualdade em todas as formas e a tolerância perante o outro, é para muitos, uma novidade.
Temos de nos habituar que nada está garantido. Temos de fazer prevalecer os valores de Abril e temos de o fazer acima de parentescos, amizades, e afinidades. Ficar no canto a ver é estar do lado errado da barricada. Contra populismos, autoritarismo e laivos de fascismo perdeu-se o direito à apatia da neutralidade.
Crónica de Luís Alves Vicente
Licenciado em jornalismo, Vicente (é assim que prefere ser tratado) trabalha atualmente como storyteller. Enquanto não escreve histórias, tenta estar atento ao que se vai passando à sua volta.