Tempo para pensar
Antes de mais, é necessária uma nota prévia referindo que não pretendo, com este texto, exercer qualquer juízo de (falta de) valor sobre a ERC ou sobre a sua existência num contexto jornalístico que ela não acompanhou. Sobre isso, Pedro Miguel Santos, director dos Fumaça, já se debruçou de maneira brilhante através do seu último editorial.
Ao invés disso, pretendo sim reflectir sobre o contra-natura que é uma Entidade que se presta a “regular e supervisionar todas as entidades que prossigam actividades de comunicação social em Portugal” exigir a predefinição de qualquer tipo de periodicidade adstrita às publicações de organismos que buscam informar — e o que isso significa em qualidade e não quantidade — e a forma como isso é resultado dos nossos tempos. A ERC, ao determinar no seu registo qualquer tipo de obrigatoriedade ou compromisso prévio sobre a periodicidade — (sob pena de haver consequências para o órgão) é a primeira de todos a dizer que não importa o conteúdo, não importa questionar, estudar, perscrutar ou ponderar. Essencialmente, tudo aquilo que deve guiar um jornalista, ou que nós, leitores, deveríamos procurar no seu trabalho.
Em vez disso, fomenta-se a rapidez, a regularidade (com todos os vícios adstritos à mesma), a impulsividade e a precipitação, tudo características que nos afastam da verdade e ainda mais de um trabalho que pode e deve investigar todos os ângulos possíveis da notícia antes que ela chegue até nós. Uma Entidade que exige uma regularidade a um trabalho que é intelectual, de investigação, e até de terreno, que não pode ser balizado no tempo, é uma Entidade que vê nos jornalistas meros copistas acríticos sem nenhuma função pensante.
Num mundo de imediatismo, o jornalismo deve resistir-lhe com todas as forças. Os jornalistas não podem ser equiparados a cowboys de gatilho rápido. Prova de que a ERC se trata puramente de um mundo feito por teóricos é o facto de dois sites difusores de fake news (que não irei mencionar por não serem merecedores disso), cumprindo as burocracias kafkianas que esta pede, estão registados como órgão de comunicação social juntamente com outros órgãos que, de facto, fazem jornalismo. De que vale um registo, que devia ser garante de qualidade para o leitor, se este não se importa com a mesma, e pior, a desvalida em detrimento de uma simples check list?
Colocar todos os jornais sobre os mesmos critérios não é igualdade, é apenas igualitarismo, com todos os vícios que o mesmo possa ter neste âmbito. É impensável exigir os mesmos critérios de registo a órgãos de comunicação social independentes e de referência como é o caso dos Fumaça ou do Shifter, que se exige a grandes grupos bem conhecidos por todos. Mais, é uma ingerência grave na condução dos destinos e objectivos editoriais fazê-lo, já para não falar da falta de adaptação da ERC e demais órgãos de regulação ao digital e ao que por vezes está adstrito à independência: poucos meios e pouca gente.
Ao ser exigida uma necessidade de compromisso prévio por uma regularidade de publicação, faz-nos em último caso pensar sobre o papel da jornada de oito horas em que nos baseamos no mundo laboral como o conhecemos hoje em dia. Fará sentido qualificar o “dia” de trabalho de um jornalista como um pelo qual o movimento operário durante a Revolução Industrial na Grã Bretanha (em meados do século XIX) se bateu? Vendo o horário como limitação máxima, visando uma defesa intransigível de uma certa (mas mínima) qualidade de vida dos trabalhadores, sim, sem dúvida. Mas fará sentido tê-lo como referência para exigir produtividade a um jornalista, cujo trabalho não deveria ter de cumprir prazos ou números? No jornalismo a produtividade do órgão de comunicação visará sobretudo garantir a viabilidade e sustentabilidade económica da instituição em si através das leituras e publicidade que isso faz gerar, mas não deve ser a ERC a obrigar a isso logo à partida ou a julgar conhecimento sobre a realidade do órgão. Caberá somente ao próprio definir que caminho pretende seguir, permitindo assim, também, qualquer mudança de rumo tomada em benefício dessa verdade jornalística — uma expressão que para mim deveria ser um pleonasmo, mas que com a ajuda da ERC perdeu esse valor. Não pode, nem deve ser esse o foco, nem ele se pode alimentar de nós.
Se esta pandemia nos deveria ter demonstrado alguma coisa até agora é de que a informação baseada em estudo cientifico, ponderado e comprovado se deve sempre sobrepor ao soundbyte rápido e desinformado sobre o desconhecido. Estará a ERC e todos os vícios que orbitam à sua volta preparada para fazer essa reflexão? Mas, e nós, que tantas vezes somos alvo fácil para as letras gordas e títulos sensacionalistas, estamos preparados? Estamos prontos para abdicar do instantâneo e tornarmo-nos menos “líquidos“?