Terra Batida: ‘Falaciosa Realidade’, oxigénio em estado puro
Quando um grupo de jovens músicos com formação clássica se junta, o resultado é isto Falaciosa Realidade. Um CD cheio de montes e vales, esperança e felicidade. Uma lufada de ar fresco na música ligeira portuguesa.
Os Terra Batida são uma banda de jovens músicos de Vila Nova de Famalicão, entre 18 e 22 anos. Apesar da formação de base clássica, tiveram a humildade de cruzar referências clássicas, jazzísticas e folk com a música ligeira portuguesa. Falaciosa realidade é o seu primeiro CD de originais, com 12 temas trabalhados por André Silvestre, que dá a voz e as letras a este álbum que conta com 12 convidados.
O Capitão Coragem que percorreu Trilhos incertos, deixados para trás com Madalena. O Superomem que não veio, a esperança de Abril que protegeu o Rapaz Valente. O Relógio que não parou , mesmo na Aldeia que teimou em viver Um Dia com todo o seu esplendor. A distante Horvik que sentiu In Fado um Viajante num caminho turvo mas simples.
Coros femininos num arranque tranquilo, na simplicidade de um piano. A história do Capitão Coragem vai voando mais alto no acompanhamento de violinos ritmados, que se interpelam nos coros alinhados com a firmeza das palavras, no “acreditar que o sonho irá triunfar (…) dançar a valsa da vida e puder ver essa luz que quero ter”.
Um tic tac, a fazer lembrar os saudosos conimbricenses Anaquim. “Vida vadia que vai acabar na monotonia”, o Relógio não pára e o sofá será sempre o recurso comodista do ócio. Uma festa gigante de instrumentos de sopro, com a acústica da guitarra a desbravar o caminho. Um canto de estrofes seguidas, quase sem respiração. Um acorde sumido que remata o final.
Uma estrutura de rock na guitarra eléctrica que vai dizendo que apesar de tudo a Aldeia rejuvenesce. Mesmo que esteja “esquecida pelo tempo”, o acordeão e o synth marcam o pulsar do refrão e dão-lhe vida. Num virar de segundo da marimba, os instrumentos crescem em ovação orquestral pelo “menino que voa de peito aberto”.
O violino afogasse na guitarra acústica num “mar de amor”. “Amigos, armas e suor, desnecessariamente perdemos com dor”. Um hino de contemplação à consciência no sentir da partilha e, acima de tudo de que a posse é tão fugaz que nem Um Dia inteiro é nosso.
Dança em ritmos de jazz o Rapaz Valente inocente e abandonado, mas determinado numa pop clássica de um “Sol no Inverno /Chuva na Primavera”. Um alvoroço de sorte, na dúvida das escolhas entre o que fomos e do que seremos, mas com a música e a poesia nas guitarradas que se cruzam no timbre de um baixo que eleva a voz no synth.
Vozes de fundo, uma porta que se abre num piano que se vai mostrando forte, encorpado no Superomem que avisa a fragilidade da mentira. Inteligentemente, os instrumentos de sopro revezam-se inteiros num diálogo com o contrabaixo que se deixa dominar ora pelo clarinete ora pelo sax tenor. “E só nos sonhos a mentira é real (…) a verdade não se pode controlar”.
Recordações de uma esperança de Abril, do mundo novo que foi promessa do passado. A flauta Transversal entra com o pandeiro a ritmar a melodia “Respirar fundo e adivinhar de vez aquilo que te espera”, no trautear simples da guitarra. Uma força que se sente na esperança das palavras e na harmonia dos instrumentos, “Sem destino mas preferes continuar / Sonho persiste mas tu não vais ceder / Antes feliz e forte do que morrer”. A introspecção do piano que termina como um sopro lento, a dizer que Abril valeu a pena.
Estórias que se cantam com a intensidade da saudade, de alguém que parte ou que fica numa ausência. Arrojo do piano e do violoncelo, num poema da simplicidade de Madalena que na fraqueza atormenta a coragem, “Mas Madalena é forte, traz a espada e o capote”. Embalados na repetição das estrofes e do piano, estremecemos num refrão que não se repete num “Tempo que não volta atrás”. A bateria entra um tom acima, direcciona o violoncelo, provoca o baixo e pede à guitarra que não a abandone. Uma explosão em uníssono, acompanhada por uma dor na voz “ Foi tudo e não foi nada / E agora adormeci / Memórias que vivi”. E como uma tempestade que passa e deixa o brilho na terra, o piano volta a embalar e a fazer-nos sorrir.
Um tributo à natureza, esbatido numa declaração de amor que cheira ao pó que se levanta dos pés. Um fresco na pele de água salgada, nas montanhas que se avistam no sopro do trompete. Um regresso às origens de uma terra que se guarda na alma, Trilhos é uma saudade distante dos cheiros, das cores, dos afectos.
Um Capitão Coragem que dança a valsa da vida e arrisca o sonho e, “sem medo segue sozinho”, para (tema) Horvik . Sem sabor e com dor, um aconchego de auto-estima de continuar a sonhar, “Ama quem és / Sonha quem és”. Uma festa orquestral em que se conjugam mais de 10 instrumentos em mais de 20 mãos talentosas.
In Fado e Viajante rematam esta aventura vivida por André Silvestre e os seus companheiros. A guitarra portuguesa aparece no “alegre Fado” que canta um futuro incerto. Uma fronteira que espreita nas teclas do piano que acompanha o dedilhar de cordas (João Robim), “Na Terra de Camões está aquilo que desejas”. É no som nostálgico do violoncelo que Viajante se recolhe na voz de Inês Rodrigues da Silva. O cravo toca as “Doze badaladas feitas sem demora”, na vida do viajante de pele morena que faz o tempo na sombra do vento.
Os Terra Batida têm à sua frente muito terreno para desbravar, a música portuguesa precisa deste registo como “pão para a boca”. Oxigénio em estado puro, da serra ou do mar, do encanto ou da falta dele. Falaciosa Realidade será certamente um dos discos do ano, pela sua honestidade poética e maturidade instrumental.
Sobre os Terra Batida:
André Silvestre natural de Coimbra, é um jovem pianista e compositor português vencedor de prémios e com participações em países como Portugal, Espanha, Itália, Suécia e Dinamarca. Aos 17 anos entrou na Royal College of Music na Dinamarca e foi reconhecido como um músico de excelência por Anne Øland, mestre de piano dinamarquesa. Começou a ganhar gosto pela área da composição para cinema e ganhou prémios com o filme “Arpeggio”, tendo colaborado com realizadores como Jorge Pelicano e Paulo Lima. Fruto de um encontro com Bobby McFerrin num workshop, onde se interessou pela área da música “ligeira”, vendo a música clássica como uma ferramenta a utilizar noutros campos. Em 2015 decidiu criar o projecto Terra Batida com João Robim e Pedro Lima. João conheceu a guitarra aos 10 anos e desde aí que pouco mais faz que acarinhá-la e mostrá-la a todos com que se cruza. Natural de Braga, também ele vencedor de inúmeros prémios em Portugal, estuda actualmente na Universidade de Évora, com o consagrado Professor Dejan Ivanovic. Pedro Lima natural de Famalicão, estudou música e completou o 5º grau em piano. O seu interesse pela percursão, levou-o a estudar “bateria” na Escola de Jazz do Porto. Participa em vários projectos musicais e frequenta a Licenciatura de Educação Musical na Escola Superior de Educação no Porto.