Terraplanismo: a ascensão da desonestidade intelectual em pleno século XXI

Não é de agora, nem é novidade nenhuma. O terraplanismo anda por aí, veio para ficar e tem fiéis seguidores que o defendem com unhas e dentes. Estão por toda a parte, na internet, nas redes sociais, nos canais do YouTube, nas ruas com que nos cruzamos, e alguns têm a felicidade de ter um no seu círculo de amigos, o tal “o amigo chalupa” como muitas vezes é assim carinhosamente denominado. Vêm sempre com uma panóplia de argumentos falaciosos e teorias da conspiração como se tudo fosse uma invenção e que estamos enganados há milénios. São assim porque acham que são alternativos ao desacreditarem as organizações, julgando-se corajosos ao enfrentarem as certezas do nosso mundo, inventando teorias sem sentido e sem substracto científico algum, representando a ascensão da desonestidade intelectual em pleno século XXI. Parece que foi algo que surgiu agora, com as fake news, a informação de fácil acesso e o modo como é fácil distorcê-la, grandes preocupações dos tempos actuais. Mas o fanatismo terraplanista é bem mais remoto do que julgamos.
Apesar de ser um pensamento obsoleto proveniente da antiguidade, quando ainda não tínhamos conhecimentos e bases suficientes para interpretar o nosso mundo e comprovar inequivocamente muitos dos conceitos que hoje nos são bastante óbvios, o movimento terraplanista moderno ganhou notoriedade já no século XIX, pelo inventor inglês Samuel Rowbowtham quando já provas não faltavam. Em 1865 publicou um livro intitulado “Astronomia Zetética – A Terra Não É Um Globo” sob o pseudónimo Parallax, que visava comprovar que a Terra era plana. De notar que zetético, é uma palavra proveniente do grego zetetikos que sigfica inquirir, embora uma coisa é inquirir outra coisa é distorcer. Neste livro Rowbowtham distorce muitas coisas, ao argumentar que a curvatura da superfície da água dos canais, como com a curvatura inexistente no Old Bredford River em Cambridgeshire, na Inglaterra, justifica o facto da Terrra não ser redonda, um dos falsos argumentos ainda hoje usados pelos terraplanistas e que não parece passar de moda. O livro de Rowbowtham encontra-se ainda à venda e é uma obra de culto para os fiéis seguidores do Terraplanismo, pois propõe que a Terra se trata de um disco achatado e o seu centro é o nosso Pólo Norte sendo que o Sol a Lua e os restantes astros movem-se sobre a superfície.

Os cálculos apresentados por Rowbowtham sobre este fenómeno observado no Old Bredford River, foram repetidos em 1870 por Alfred Russel Wallace, um dos pioneiros da teoria da evolução das espécies a par de Charles Darwin. Tudo começou quando John Hampden, outro acérrimo defensor do terraplanismo, promoveu numa revista o concurso de quem conseguisse provar a existência de uma curvatura convexa na superfície terrestre, ganharia um prémio de 500 libras (equivalente hoje a algo como 60 mil libras, quase um segundo prémio de uma lotaria!). Wallace reparou no conteúdo do concurso e achou curioso, até porque o prémio era bastante simpático, numa altura em que o próprio estava a passar por dificuldades financeiras. Fixou uma faixa preta na Ponte Old Bedford, no mesmo rio, e observou-a com um telescópio a partir da Ponte Welney, a 10 quilómetros de distância. No meio, colocou um poste com dois discos sendo que o telescópio, o disco superior e a faixa preta estavam à mesma altura acima da água do rio. Com o telescópio, Wallace observou que ambos o discos estavam acima da faixa preta, provando assim a curvatura da superfície terrestre. Wallace corrigiu ainda alguns erros ao incluir o efeito da refracção da luz que tinha sido desprezado por Rowbowtham, demonstrou que de facto havia uma curvatura, concluindo o óbvio: a Terra era uma esfera. O júri deste concurso, que era editor da revista onde foi publicado, declarou Wallace como vencedor. Como qualquer terraplanista que não se compactua com a realidade, John Hampden recusou-se a aceitar a verdade dos factos e processou Wallace numa luta que chegou mesmo aos tribunais e que frustraria Wallace para sempre, pois gastaria um valor superior em sua defesa do que aquele que ganharia com esta aposta.
Samuel Rowbowtham foi de facto o principal responsável pelo chamado Flat Earth Revival, e acabou por ser uma figura de interesse por parte de alguns historiadores de ciência, não pela vertente científica que era inexistente, mas pela sua vertente pseudocientífica. Não foi claramente a único pois o movimento manteve-se, com outros seguidores, um pequeno grupo de tresmalhados da ciência. Devido à sua obra, se assim se pode chamar, foi fundado no final do século XIX a Universal Zetetic Society (UZS) que teve uma líder, Elizabeth Lady Blount que se tornou presidente desta sociedade após a morte de Rownowtham. A UZS teve o seu desígnio e manteve-se activa até ao início do século XX, algo que se julgaria ser um declínio e uma morte que estaria mais do que anunciada. Nunca se soube ao certo o que aconteceu, mas provavelmente alguns dos seguidores ganharam juízo e afastaram-se da ideia bizarra de que a Terra era plena. No entanto, ao contrário do que se julgava, os terraplanistas não se extinguiram por completo.

A Flat Earth Society foi fundada em 1956 pelo americano Samuel Shenton (outro Samuel, imagine-se!), inicialmente denominada International Flat Earth Research Society (IFERS), mas que de research não deveria ter mesmo nada. Mesmo com imagens de satélites do nosso planeta, missões espaciais e o homem ter chegado à lua, os terraplanistas nunca se enxergaram, vindo sempre com ideias mirabolantes sem qualquer fundamento de que era tudo encenações e manipulações de imagens. Shenton, chegou mesmo a sugerir que a missão Apollo 11, que colocou pela primeira vez o Homem na Lua, foi toda um encenação e que as pessoas que eram preparadas para ser astronautas e embarcarem nas missões espaciais, eram hipnotizadas para acreditar que iriam mesmo para o espaço. Após a morte de Samuel Shenton, a sociedade passou a ser liderada por Charles K. Johnson, sendo que o próprio negava a veracidade das missões espaciais e as observações astronómicas como uma invenção para afastar as pessoas da verdade bíblica de que a Terra era plana. Para além da Bíblia Sagrada ser um livro religioso e não científico, não surge em parte alguma surge um profeta ou um apóstolo que diga que a Terra é plana. O movimento seguiu até à sua morte em 2001, ficando aparentemente extinto. Mas, mais uma vez, os terraplanistas não. Apenas se encontravam tímidos até que alguém os reavivasse.
Corria o ano de 2004 quando, num fórum da internet, Daniel Shenton, que não tem qualquer parentesco com Samuel Shenton (aceitam-se teorias da conspiração para coincidências com tantos nomes em comum), lançou novamente a questão de que a Terra era plana pois, segundo o próprio, ninguém tinha conseguido provar o seu contrário. Com o modo como a internet dispara informação seja ela verdade ou mentira, estava assim aceso o rastilho que continua a alastrar até hoje, com várias pessoas a deixarem-se levar por pensamentos pseudocientíficos e sem qualquer fundamento científico. Sabemos os nomes dos pioneiros da ressurreição do terraplanismo, porque eram muito poucos, muitos deles marginais e sem qualquer relevância. Hoje são tantos os terraplanistas e os conspiracionistas por esse mundo fora que defendem que a Terra é plana, alguns deles anónimos, que já se torna difícil fazer uma lista. E nessa lista de pessoas que são fieis seguidoras do terraplanismo encontramos personalidades de todos os sectores, seja no desporto, nas grandes empresas, na política e até mesmo no meio académico (esta última sim, é bem grave). A pandemia terraplanista está aí, e são cada vez mais os que caem nela ainda para mais com redes sociais, canais do YouTube e toda uma era cada vez mais dependente dos meios digitais. Mas claro, só cai mesmo quem quer.
Se os terraplanistas precisavam de mais provas, houve quem as conseguisse mesmo há bem pouco tempo. Porém, não eram as provas que realmente queriam. Em Dezembro de 2024, o youtuber e terraplanista convicto Jeran Campanella investiu cerca 35 mil doláres para fazer uma expedição à Antárctida a partir da Califórnia onde vive, uma viagem de 15 mil quilómetros. O objectivo era simples, provar que havia dia e noite tal como em qualquer país nos trópicos, e não as supostas 24 horas de sol que existem por durante o Verão. Note-se que a Antárctida, por estar exactamente no Pólo Sul da Terra, tem 24 horas diárias de sol durante o Verão e 24 horas diárias sem sol durante o Inverno. As estações Verão e Inverno equivalem praticamente a seis meses com luz do dia e outros seis sem a luz do dia. Podemos verificar isso também no Ártico embora quando é Verão no Pólo Norte, é Inverno no Pólo Sul e vice-versa. O movimento de translação da Terra e a sua inclinação de cerca de 23.5º, faz com as estações do ano aconteçam, e que os polos sejam iluminados totalmente pelo Sol numa metade do ano e privados de luz solar na outra metade. Isto qualquer criança que frequente o ensino básico sabe explicar, refutando de forma simples e eficaz os argumentos sem qualquer fundamento que são expostos pelos terraplanistas adultos.
Jeran Campanella poderia ter ficado quietinho em casa, aproveitando o clima ameno da Califórnia e poupado os seus 35 mil dólares se prestasse atenção ao modo como os barcos desaparecem lentamente no horizonte à medida que se afastam, na variação da duração dos dias sempre que nos aproximamos de um solstício sendo que ficam tendencialmente mais longos no Verão e mais curtos no Inverno, e se sobretudo prestasse mais atenção às aulas de ciências que teve na escola. Viu-se obrigado a fazer um vídeo, admitindo que estava errado, e a ser enxovalhado por muitos utilizadores das redes sociais. Era desnecessário, mas talvez tenha servido para esclarecer os terraplanistas que ainda hão de arranjar uma ideia lunática ou uma teoria da conspiração que justifique aquilo que Jeran e mais pessoas viram na Antárctida. Pelo menos, teve a experiência de visitar o Pólo Sul, algo que de facto não é para todos e que deve ser uma aventura tremenda. Foi preciso isso mesmo para que caísse na realidade.
A ciência, tal como toda a obra humana, é feita por homens e mulheres que deram o seu contributo, passando testemunhos, para que hoje tenhamos os conhecimentos e as bases da realidade ao nosso dispor. No que toca aos terraplanistas, este é quase um movimento de desonestidade intelectual e de quem se julga alternativo e dono da verdade, quando acaba por ser ridículo e dono de uma falta de carácter grotesca. Figuras heróicas da ciência como Pitágoras, Aristoteles, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Isaac Newton, e outros tantos que deram o seu contributo ao longo de séculos para sustentar aquilo que para nós hoje é óbvio, não arriscaram as suas vidas nem perderam horas de sono para que o primeiro youtuber que nos aparece no feed das redes sociais nos venha dizer que afinal é tudo uma treta. Enquanto as grandes figuras da humanidade vão continuar a ser estudadas e faladas por mais remoto que seja o período com que tenham vivido, Jeran Campanella juntamente com Samuel Rowbowtham, Samuel Shenton, Lady Blount, John Hampden e outros tantos, ficarão para uma futura caderneta de cromos insignificante, no sentido figurado na palavra. Ou pelo menos para compilação de comédia que muitos possam aproveitar no futuro, pois tratam-se de verdadeiros inimigos da ciência.
Nunca pensaríamos que ao passar o primeiro quarto do século XXI, estivéssemos perante movimentos feitos por pessoas que simplesmente se deixam levar por informações tão levianas e sem fundamento que encontram na primeira fonte que lhes aparece sem questionar a sua veracidade. Vivemos tempos em que ser alternativo se confunde com o grau máximo de estupidez. Perigoso será quando tivermos líderes mundiais crentes no terraplanismo. Olhando para o panorama actual, não estamos muito longe disso. O terraplanismo, não é um movimento, nem uma ciência, nem uma religião. É talvez a palavra que melhor define o que é a desonestidade intelectual, a mais pura e a que mais ascendeu em pleno século XXI. Albert Einstein costumava dizer que só havia duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana, sendo que não estava certo quanto à primeira. À medida que os tempos avançam descobrimos que o universo é muito maior do que aquilo que julgamos mas em comparação à estupidez humana consegue ser um melhor candidato no que toca à sua finitude. E pelos vistos Einstein continua, ainda hoje, a ter razão.
Muito recentemente, fomos brindados por uma belíssima canção dos Quatro e Meia, intitulada Terraplanismo, que resume tudo aquilo que é este movimento. Por mais descabido e insano que seja, o Terraplanismo ainda consegue servir de inspiração nas artes, o que não deixa de ter um toque irónico e ao mesmo tempo espantoso.
“Espero bem que o teu terraplanismo seja engano
Que o planeta seja arredondado e nunca plano
Porque eu vou até ao fim do mundo só por ti
Nem sei como ainda não caí
Nem sei como ainda não caí
Olha só
Enquanto tu conspiras
À cata de mentiras
O mundo vai e vem
Olha só
Amarra-te ao que é certo
Eu estou aqui tão perto
E só te quero bem
Espero bem que a tua teoria esteja errada
Que a nossa pegada não esteja a ser espiada
Porque eu troco o rumo cada vez que penso em ti
Nem sei como nunca me perdi
Nem sei como nunca me perdi
Olha só
Enquanto tu conspiras
À cata de mentiras
O mundo vai e vem
Olha só
Amarra-te ao que é certo
Eu estou aqui tão perto
E só te quero bem”
Não é por acaso que os Quatro e Meia são rapazes de Coimbra, cidade onde a ciência e o conhecimento prevalecem há mais de sete séculos. Não é por acaso que o Terraplanismo é uma mão cheia de nada, que esperemos que seja apenas e só uma moda. Tal como versos da canção, devemos amarrar-nos ao que é certo e àqueles que estão perto de nós, aos que nos chamam à razão perante um muito cada vez mais difícil, mas que se torna mais fácil quando contamos com aqueles que se preocupam connosco e que querem verdadeiramente o nosso bem.