“The Menu”, de Mark Mylod: uma distinta e pertinente fábula sobre bestas e animais
O ser humano é, por natureza, conflituoso. Não existem verdades muito mais evidentes do que aquela que nos garante que, se enclausurarmos um número razoável de pessoas no mesmo espaço, por mais lato que seja, este tornar-se-á encolhido e achatado, com o decorrer dos dias, com o decorrer natural dos atritos de quem ali foi instalado.
Nesse sentido, torna-se bastante fácil de compreender por que razões nos são vendidas, sobretudo no século XXI, tantas fontes de entretenimento que visam satisfazer a mórbida curiosidade residente no cidadão comum em assistir aos seus pares nas mais insignificantes ou ofensivas altercações. Como um acidente rodoviário apraz mais à vista que um arco-íris, é mais memorável a repetição de imagens duma briga num reality show, ou o imparável esguicho de sangue dum berrante vermelho num filme do Tarantino.
Num sentido subliminar, apesar disso, o mais interessante não é observar as manifestações implícita ou explicitamente violentas do ser humano — são o que menos demora a vir ao de cima —, mas sim esperar, qual virologista registando atividade microscópica, que este se reduza por vontade própria ao seu expoente mais básico: um animal.
Contudo, ao contrário do animal, ao qual somente escapa uma consciência de mortalidade, o ser humano conseguiu inserir-se numa ideia de civilização que, entre outras coisas, mede enormes esforços para alimentar a falácia de ser superior ao símio de quem herdou a fisionomia há centenas de milhares de anos. Daí resultaram roupas, calçado, escovas, pratos e talheres, linguagem, penas, canetas e livros, maquilhagem, perfumes e papel higiénico. Ainda o mais curioso sendo o engenho com que o Homem, precisamente dentro deste sistema artificial e forçado de “separação de espécies”, consegue dividir-se a si próprio, criando classes e estatutos sociais. Para tal, contribuem também, duma forma menos hostil, coisas como arte, moda e até gastronomia, pequenas fontes de conhecimento específico que boa parte da população consegue fingir possuir, a fim de falsear determinado intelecto.
Mas, de novo, todas as convenções, elegâncias e idealismos são deitados por terra quando se coloca o ser humano em situações de crise ou risco, obrigando-o, por conseguinte, a conviver com os seus instintos mais primitivos: a disputa e a sobrevivência.
Acompanhando esta premissa, nascem muitas histórias que contribuem para um cinema mais satírico que, não obstante a sagaz pertinência temática, conseguem, por igual, corresponder ao prazer de testemunhar personagens em troca de insultos e facadas. Pouco mais que uma forma de apaziguar a cobarde passividade de quem prefere ir ver um filme a investir numa discussão.
O caso mais recente é “The Menu”, realizado pelo britânico Mark Mylod, que começa por seguir um casal, duas cabeças duma dúzia, que embarca para um restaurante exclusivo numa ilha remota, onde um prestigiado chef os irá receber com uma excêntrica e chocante ementa.
Compensando uma discutível falta de originalidade, o filme muscula-se ao propor, desta vez, a comida como mais um de tantos veículos a que o ser humano recorre, de forma elitista e pretensiosa, para disfarçar a ignorância que tanto o apoquenta, sem que tenha necessariamente noção dessa mesma performance.
Para tal, apresentando a ementa de filmes do género — distintas personagens encurraladas por tempo indefinido —, os guionistas Seth Reiss e Will Tracy começam por conjugar personalidades que, à falta doutras parecenças, partilham a situação de requinte. Um bronco ator de Hollywood e a namorada, um casal idoso, um trio de amigos abastados e uma dupla pedante de críticos gastronómicos. Sem esquecer o casal principal, interpretado por Anya Taylor-Joy e Nicholas Hoult, que, por si só, convida o público a escolher um de dois lados, um de dois estereótipos: ela, a cínica que faz pirraça de toda a pompa e circunstância do ambiente e dos respetivos integrantes; ele, o sabichão de smartphone em riste, um profundo conhecedor e admirador de cozinha e do chef, interpretado por Ralph Fiennes.
Empurrando estes lugares-comuns em forma de pessoa para um ambiente misterioso — a banda sonora de Colin Stetson viaja depressa do sofisticado ao sinistro —, resta observá-las em tensas situações e desfrutar da espera necessária, e geralmente curta, para que todas as suas capas caiam com a pretendida brutidão. Para tal, Mylod, conhecedor dos ingredientes duma boa sátira — realizou treze episódios da série “Succession”, da HBO —, cumpriu eximiamente duas tarefas.
Primeiro, geriu uma narrativa de reviravoltas que, mais do que uma vez, conduz a surpresas, o que merece louvor, ainda mais por se limitar a um espaço único (ou quase). E segundo, aliado ao diretor de fotografia Peter Deming, de “Mulholland Drive” (2001), e ao editor Christopher Tellefsen, de “Moneyball” (2011), originou uma identidade visual atenta tanto ao foreground como ao background. Ou seja, são raras as vezes em que, dentro da planta previamente disposta de mesas e clientes, não são visíveis tanto as personagens em destaque como as que dialogam timidamente lá atrás.
A cereja no topo de bolo, escusado será dizer, é o elenco, sustentado por, entre outros, uma Anya Taylor-Joy deslumbrante, como já se tornou habitual, um Nicholas Hoult divertido, mas não isento de camadas, e um Ralph Fiennes genuinamente intimidante e imprevisível.
“The Menu”, munido de uma muito perspicaz comédia negra, está longe, apesar de tudo, de ser o filme mais imprevisível do ano — sobrevoa a constante sensação de que algo pode acontecer, de haver algo errado com aquela talentosa equipa de cozinheiros —, sujeitando o argumento a selar determinadas cenas com resoluções, inesperadas sim, porém dissonantes. Além disso, o número considerável de personagens a desenvolver — ou antes, de “estereótipos a dissolver” — pode contribuir para algumas carências de backstory.
Contudo, com uma receita pragmática e direta ao assunto, Mylod, naquela que é a quarta longa-metragem de sua autoria, conta-nos uma distinta e pertinente fábula sobre bestas e animais, como jamais deixa de ser pertinente um olhar cirúrgico sobre o espécimen que, por devaneios do quotidiano ou da convivência, se julga superior ao macaco peludo e birrento de quem adquiriu a genética.