‘The Salesman’ e a mestria de Asghar Farhadi
Em 2009, Asghar Farhadi dava-se a conhecer ao ocidente através de About Elly. Nos anos subsequentes chegaram até nós A Separation e The Past. Como nestas obras anteriores, Farhadi busca novamente a domesticidade e o ambiente familiar, de proximidade, como campo da sua obra, escrutinadora por excelência do interior humano.
O Prémio de Melhor Actor e Melhor Argumento no Festival de Cannes são reconhecimentos que se espera que não fiquem por aqui, com uma muito provável (nova) nomeação ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.
A história de The Salesman começa com o prédio onde habita o casal Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti) prestes a ruir. Na iminência do colapso, ambos são obrigados a ir viver para outra casa, um apartamento arranjado por Babak (Babak Karimi), membro da companhia de teatro onde actuam.
Um acontecimento que coloca a vida de Rana em perigo e a incómoda situação da antiga inquilina ter deixado para trás todas as suas coisas, leva Emad a descobrir quem ela era. A resposta vem através de um eufemismo, “uma mulher com muitos companheiros”. Aqui torna-se mais clara o paralelismo criado por Ashgar Farhadi entre o seu filme e a exibição da peça de Arthur Miller, Death of a Salesman. A “vergonha” e sobretudo a exposição à mesma (especialmente quando se fala da figura feminina) são questões de grande importância em todas as sociedades, mas sobretudo numa sociedade como a iraniana. As situações presentes em peça, onde a exposição ao público é imediata, são desse ponto de vista, uma escolha óbvia e bem conseguida por parte de Farhadi, assim como as situações criadas pelas cenas em palco e que são resolvidas em bastidores.
Mas há mais riqueza em The Salesman que a visão sobre a cultura iraniana. O realismo absoluto de tudo o que é gravado e a insegurança que Rana acaba por sentir no seu próprio apartamento são demonstradas de forma sublime pelos seus intervenientes. É entre quatro paredes que o filme tem os seus focos de acção, servindo-se das janelas e das portas para um uso quase metafórico com a criação de uma oposição clara entre liberdade/enclausuramento.
Ao longo do filme assistimos a uma subtil mudança de Emad, que passa de compreensivo para com a sua mulher, dando-lhe o espaço que necessita para ultrapassar a situação traumática, a uma atitude vingativa, que não descansa até encontrar o causador do ataque que resultou, em última instância, num vazio interior da sua mulher Rana. Há em The Salesman uma complexidade dramática e psicológica no acto de vingança assinalável, e que em certos aspectos nos remete para Prisoners, obra de Denis Villeneuve. A dúvida coloca-se: Emad age por vingar a situação criada à mulher, ou age por impulso próprio e egoísta de expôr outrém à mesma humilhação a que foi exposto?
Só o método cirúrgico de Asghar Farhadi conseguiria colocar no meio disto um momento de comic relief com a exibição de um filme durante uma aula dada por Emad em que este acaba por adormecer, para logo de seguida nos criar novamente um ambiente de “cortar à faca”.
Farhadi mais uma vez tem a destreza e capacidade para se reinventar dentro do seu próprio estilo e tema preferencial. A forma como o realizador nos leva até ao terço final de filme é digna de destaque. Há um controlo absoluto sobre a obra de forma a conseguir criar incómodo e nos deixar sem respiração num ambiente de tensão que é quase palpável. Ao nível dos melhores. The Salesman consagra – como se ainda existissem dúvidas – o realizador como um mestre do drama e do suspense “doméstico”, mas mais do que isso, consagra Farhadi como um dos maiores realizadores contemporâneos.