“The Wire”, a lentidão narrativa ao serviço do realismo

por João Estróia Vieira,    11 Maio, 2025
“The Wire”, a lentidão narrativa ao serviço do realismo
“The Wire” (2002-2008), série de David Simon
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“The Wire” (2002-2008) é uma das séries mais aclamadas da história da televisão. Criada por David Simon para a HBO, ao longo de cinco temporadas a série apresentou um olhar realista e complexo sobre a cidade de Baltimore, explorando diferentes aspetos da sociedade americana, como o tráfico de drogas, a corrupção policial e política e a incapacidade do sistema escolar e da imprensa. Cada temporada foca-se num setor específico da cidade, mas todas estão interligadas, mostrando como as instituições falham sistematicamente em resolver problemas estruturais. Diferente das séries policiais tradicionais, David Simon recusou-se a simplificar a luta entre “o bem e o mal”, retratando tanto criminosos como agentes da lei com profundidade e com uma minúcia própria do jornalismo de investigação e uma ligação com o palco da sua obra: Baltimore.

Antes da série, Simon trabalhou como repórter criminal durante mais de uma década no “The Baltimore Sun”, período em que lidou de perto com a corrupção das instituições municipais e o declínio da vida urbana. Desiludido com o jornalismo, viria a tornar-se produtor e argumentista de “Homicide: Life on the Streets”, série baseada em dois livros seus e produzida por Barry Levinson. Após isso, levou o seu talento para a HBO, onde, juntamente com o co-autor e ex-detetive Ed Burns, criou “The Corner” (2000), onde trabalhou com muitos dos atores que viriam a integrar o cast de “The Wire”. Uma espécie de experiência para aquela que viria a ser a sua maior obra.

A abordagem narrativa de “The Wire” distingue-se pelo seu realismo quase documental. David Simon e Ed Burns trouxeram uma autenticidade rara ao retratar de forma mordaz e desconcertante um sistema policial, político e educacional corroído através de temas de alcance universal, como o tráfico de drogas, a corrupção, a violência, a amizade, a ética (mesmo entre criminosos) e a burocracia institucional. Os diálogos são densos e naturais, muitas vezes utilizando gírias específicas de Baltimore e o elenco, composto em grande parte por atores pouco conhecidos na época — mas que viriam a permanecer para sempre na nossa memória —, reforça esse realismo de personagens que foram inspiradas em pessoas reais, descobertas ao longo das investigações dos produtores da série.

Um dos aspetos mais marcantes de “The Wire” é o seu ritmo narrativo deliberadamente lento, que a aproxima do conceito de slowTV ou “televisão lenta”. Ao invés de recorrer a cortes rápidos, reviravoltas frequentes ou uma narrativa acelerada para prender o espectador, a série opta por uma construção gradual e meticulosa, como se estivéssemos a acompanhar uma investigação em tempo real. Essa abordagem permite uma exploração mais profunda dos personagens e das suas circunstâncias, oferecendo um retrato mais realista da vida urbana e das suas dinâmicas institucionais e hierárquicas. Trata-se de uma narrativa que exige paciência por parte do espectador, mas que o recompensa com um nível de imersão e detalhe raramente visto na televisão convencional.

“The Wire” (2002-2008), série de David Simon

O impacto de “The Wire” na televisão moderna é, por todas essas razões, imenso. Antes dela, poucas séries arriscavam um formato tão ambicioso e complexo, perdurando a sua influência até aos dias de hoje, com produções como “Breaking Bad” ou “True Detective” a adotarem também elas um realismo mais cru e uma estrutura narrativa mais paciente. A série demonstrou que o público estava pronto para histórias mais densas e com múltiplas camadas, desafiando a noção de que a televisão precisava ser simplificada para alcançar sucesso. Embora nunca tenha sido um grande fenómeno de audiência na altura, o tempo veio trazer-lhe justiça e “The Wire” acabou por se tornar num clássico de culto sendo frequentemente citada como uma das melhores séries de todos os tempos.

Um dos pontos essenciais para essa intemporalidade é a crítica social presente na série. Em vez de retratar apenas o crime de rua, “The Wire” expõe como diferentes sistemas — Justiça, Educação, política e media — perpetuam desigualdades e falhas institucionais. A série mostra que o problema das drogas não é apenas uma questão de criminalidade, mas sim um reflexo de desigualdades económicas e sociais profundas. Figuras como Stringer Bell (Idris Elba) e Avon Barksdale (Wood Harris) por exemplo, não são meros vilões, mas homens com visões diferentes que tentam, cada um à sua maneira, navegar um sistema que, de certa forma, os moldou. Da mesma forma, personagens como os detectives McNulty (Dominic West) e Bunk (Wendell Pierce) não são heróis clássicos, mas sim homens falíveis dentro de uma estrutura policial disfuncional e permeável à corrupção. Esta trabalhada e interligada teia narrativa fez com que a série não vivesse de um só protagonista, mas sim de uma rede de ligações rica e consistente que alimentava várias histórias apresentadas no ecrã. Esse cuidado de escrita e enriquecimento de todas as personagens ali retratadas, mesmo de mais secundárias, permitiu-nos conhecer e viver interpretações históricas como Omar Little (Michael Williams), um “bandido” com um código moral, que tentava não magoar inocentes e apenas derrubar quem deteriorava a sua comunidade com o tráfico de droga, ou ainda ‘Bubbles’ (Andre Royo), com uma importante e marcante história de dependência de drogas e lealdade ao “lado certo”.

“The Wire” (2002-2008), série de David Simon

Poderia julgar-se que por tudo isto “The Wire” foi um sucesso estrondoso e imediato, mas não. A receção inicial da série foi morna, principalmente devido à sua complexidade e ao seu ritmo mais lento em comparação com outras produções da época. No entanto, com o tempo, “The Wire” ganhou um estatuto de culto e passou a ser amplamente estudada em cursos de cinema, sociologia e criminologia. A sua influência transcendeu o pequeno ecrã, tendo sido citada até em debates políticos sobre justiça criminal e reforma social. Barack Obama e muitos outros líderes políticos já elogiaram a série pela sua representação honesta das falhas sistémicas da América.

No fim das contas, “The Wire” não é apenas uma das melhores séries já feitas; é também um documento social da América moderna. A sua abordagem crua e sem concessões influenciou o modo como a televisão pode ser usada para contar histórias realistas e profundas. Ao rejeitar o sensacionalismo e apostar numa análise crítica e minuciosa da sociedade, “The Wire” elevou os padrões da ficção televisiva e provou que a TV pode ser tão sofisticada e impactante quanto o melhor do Cinema e da Literatura.

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