Todos os dias são perfeitos para ler J. D. Salinger
Há dez anos morreu um dos meus autores favoritos — Jerome David Salinger, mais conhecido por J. D. Salinger. A sua vida foi longa e viveu, de certa forma, várias vidas — de aspirante a actor, a soldado, a eremita zen — até morrer aos 91 anos de idade. O romance À Espera no Centeio (o livro que o assassino de John Lennon lia enquanto aguardava à porta do artista para executar o crime) tornou-se uma das suas obras mais célebres. Mas J.D. Salinger é, sobretudo, um grande contista. As suas narrativas curtas têm a capacidade de deixar uma impressão marcante nos leitores. O mais misterioso na sua escrita (o próprio autor foi também um personagem misterioso) é que, através dos seus livros, podemos assistir a várias vidas de forma surpreendentemente verosímil.
Os livros de Salinger correspondem à concretização de muito trabalho, é certo, mas também a um enorme talento. Hemingway considerava-o um escritor de talento infinito (mesmo antes de este ter escrito o seu único romance) apenas através dos contos que foram publicados durante anos pela The New Yorker, publicação que lhe garantiu a subsistência durante muito tempo. A sua obra é curta; além de À Espera no Centeio, Salinger publicou apenas mais três livros: Nove Contos (1953), Franny e Zooey (1961) e Carpinteiros, Levantai Alto o Pau de Fileira e Seymour: Uma Introdução (1963). Contudo, nenhuma destas obras alcançou o êxito de À Espera no Centeio. Venderam-se mais de 60 milhões de exemplares deste livro e ainda se vendem, anualmente, 250 mil unidades.
J.D. Salinger foi um autor que nunca quis aparecer e que valorizava a sua privacidade acima de tudo. Decidiu sair de Nova Iorque em 1951, ano da publicação do seu bestseller. Fugiu da imagem da celebridade em que pareciam querer torná-lo. Fugiu para a vida no campo e por lá ficou até ao fim.
Quando descobri os seus contos, fiquei imediatamente impressionada com a habilidade do autor norte-americano para criar diálogos aparentemente domésticos, mas através dos quais nos surgem personagens plenas de verosimilhança, quase pessoas reais. As suas personagens são, sobretudo, figuras inadaptadas que não conseguem integrar-se na sociedade em que vivem e que não conseguem ter uma noção mínima de quem são. Um dos contos que mais me marcou foi “Um dia perfeito para o peixe-banana”, publicado pela primeira vez em 1948, na revista The New Yorker. Neste conto, Salinger retrata os efeitos colaterais da Segunda Guerra Mundial: a melancolia, os transtornos mentais e a pré-disposição para o suicídio (sabemos que o próprio autor passou por um período traumático no pós-guerra). “Bem, nadam para dentro de um buraco onde há uma data de bananas. São uns peixes normalíssimos, quando entram. Mas mal se vêem lá dentro, portam-se como porcos. Sabes lá, já vi peixes-bananas entrar num buraco de bananas e comer nada menos do que setenta e oito bananas.” O protagonista deste conto chama-se Seymour Glass (see more glass). Glass pode tanto ser traduzido em português pela palavra vidro ou pela palavra espelho (ver mais espelho, ver com/através do espelho, ver-se sempre como estando diante de um espelho). Este conto exprime uma das problemáticas mais recorrentes e perturbadoras na obra de Salinger — tentar viver encarando-se a si próprio, reconhecer a própria identidade, por mais bizarra que ao próprio possa parecer. Ver e encarar essa espécie de narciso distorcido pelas águas dos acontecimentos. O que Salinger parece dizer é que, como os peixes-bananas, estamos muitas vezes entregues à condição não-natural de comer bananas. Que a nossa vida encontra-se condenada desde a partida, que no fim da linha estará sempre a morte. Talvez tenha sido esta lucidez que lhe deu a capacidade de viver longe da vaidade da civilização. Longe de comportamentos e de um estilo de vida pseudo-imortal, que muitos assumem na forma como vivem. Todos os dias são perfeitos para se ler os seus livros. Salinger será sempre um autor a ler (ou a reler).