‘Tomai, (comei [?]), isto é o meu corpo’
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
A Páscoa aproxima-se a passos largos e, com a celebração da festa de alcance mais profundo do ano cristão, impõe-se para todos os que se consideram católicos praticantes a obrigatoriedade da comunhão.
A Quinta-Feira Santa proporcionará uma oportunidade para os cristãos rememorarem o que aconteceu no aposento a que Marcos (14:15) e Lucas (22:12) chamam «anágaion», onde Jesus celebrou a Última Ceia com os seus discípulos e alegadamente instituiu a Eucaristia com as palavras «fazei isto em memória de mim» (isto segundo a fórmula que ouvimos na igreja; mas à letra as palavras atribuídas a Jesus no Novo Testamento dizem: «isto fazei para a minha memória»).
Se perguntarmos à maior parte dos cristãos, que celebrarão daqui a pouco tempo a Páscoa, o que aconteceu nesse aposento da casa em Jerusalém onde há quase 2000 tudo começou, muitos responderão que Jesus lavou os pés aos seus discípulos e que depois instituiu a Eucaristia com as palavras «tomai e comei» e «fazei isto em memória de mim».
Esta ideia, que a maior parte de nós tem da Última Ceia, baseia-se, contudo, na mistura artificial dos diferentes relatos dos quatro Evangelhos. Em nenhum dos Evangelhos Jesus lava os pés dos discípulos e diz «tomai e comei» e também «fazei isto em memória de mim». É somente no Evangelho de João que ele lava os pés dos discípulos. É somente no Evangelho de Mateus que ele diz «tomai, comei» (no Evangelho de Marcos diz apenas «tomai»). É somente no Evangelho de Lucas que ele diz «isto fazei para a minha memória».
Em rigor, no Evangelho de João não se pode falar sequer da instituição da Eucaristia na Última Ceia, pois o texto não nos autoriza a ver isso (a não ser por projecção fantasiosa). É nos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas que encontramos a fundamentação histórica para a celebração da Eucaristia, embora devamos reconhecer que falta em Mateus e Marcos a frase sustentadora do futuro ritual de repetição e recorrência que encontramos somente em Lucas (22:19): «isto fazei para a minha memória».
Os imperativos aoristos, portanto de acção imediata e não contínua – «tomai» (λάβετε, Mateus e Marcos), «comei» (φάγετε, só Mateus) e «bebei» (πίετε, só Mateus) – não fazem ressaltar a ideia de uma patente infinitamente repetível, com alcance temporal indefinido. Para isso, para a ideia de que os cristãos devem fazer «isto… para a minha memória», só nos podemos apoiar em Lucas.
No entanto, as palavras «isto fazei para a minha memória» estão ausentes de um dos manuscritos mais antigos da Bíblia, o Codex Bezae (do final do século IV). Aliás, toda a seguinte sequência de Lucas está ausente desse manuscrito: «… “que é dado por vós. Isto fazei, para a minha memória”. E do mesmo modo <tomou> o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que é derramado por vós”».
Ora isto levanta um fascinante problema para a ciência da crítica textual aplicada ao Novo Testamento. A norma que reúne um largo consenso entre os estudiosos é que, na transmissão do texto do Novo Testamento, a redação mais sintética de um versículo tem maior probabilidade de ser autêntica relativamente a redações mais prolixas da mesma frase. Deste ponto de vista, seria legítimo encarar as palavras em Lucas que o Codex Bezae omite como uma importação para o texto de Lucas de palavras que originalmente estariam só em Paulo (1 Coríntios 11:24-25).
Todavia, atendendo à importância destas palavras de Lucas para a própria definição daquilo que os cristãos devem fazer para se poderem considerar cristãos, os estudiosos que, noutros contextos, aceitam que a redação mais sintética é de preferir à mais prolixa estão dispostos, no presente caso, a fazer uma (no mínimo muito expressiva!) excepção.