Touradas. É necessário adaptar os valores tradicionais aos valores modernos
Começo já por dizer que alegar que as touradas são uma questão de gosto é ignorar completamente que existem mais vidas em causa numa tourada do que as daqueles que assistem e que participam. Não está em causa liberdade de gostar ou não de uma actividade mas sim a circunstância dessa actividade implicar a tortura pública de um animal e consequente morte, animal esse que sente dor como qualquer um de nós.
Depois há os que defendem que se trata de arte ou cultura. Mesmo que hipoteticamente a tourada fosse considerada arte, será que tudo é aceitável em nome desta?
Veja-se o exemplo de Guillermo Vargas, artista, que em 2007 prendeu um cão subnutrido a uma parede de uma galeria colocando uma taça com alimento inacessível ao animal. Esta situação aparentemente levou a que o animal, ao fim de alguns dias, viesse a morrer. Isto será arte? Não! É sim um caso flagrante de maus tratos a animais. E se é verdade que o Estado não pode nem deve interferir na autonomia artística, também é verdade que não deverá ficar indiferente quando a mesma pressuponha a tortura de outros seres vivos. A invocação da cultura, religião ou tradição não pode em caso algum justificar violações de todos e quaisquer direitos.
Na sua obra a “Democracia Totalitária”, Paulo Otero diz-nos que, “(…) recusando intervir, o Estado permite que a liberdade dos mais fortes faça sucumbir a liberdade dos mais fracos (…)” e embora o autor não se referisse aos animais, a verdade é que esta regra vale também para eles. E se o cidadão comum, tendo o poder de renegar certos tipos de actividades não o faz, então existe uma responsabilidade do Estado intervir.
O contrassenso torna-se ainda mais evidente quando legalmente já foi reconhecido que os animais são seres sensíveis susceptíveis de protecção jurídica (art. 201.º – B, do Código Civil). Para além disso, a lei determina que “O direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte” (art. 1305.º – A do mesmo diploma). Porque razão então continuamos a permitir as touradas? Porque razão é que, aparentemente, as touradas são consideradas motivo justificativo para os maus tratos? Sim, ao criar a excepção o legislador reconhece que se trata de uma situação de maus tratos.
A verdade é que a biologia sempre afastou os animais das coisas, legalmente já são reconhecidos como seres sencientes, no entanto, a realidade cultural é, ainda, pejada de especismo.
As pessoas são livres de se divertir da forma que entenderem, no entanto, o direito ao lazer ou ao divertimento das pessoas não se deve sobrepor ao direito à vida de um animal. Quando colocados os pratos na balança, este último tem que pesar mais. A morte de um animal nunca deve ser um espectáculo, e mesmo a circunstância de este estar classificado como animal de pecuária, em nada lhe retira dignidade ou o direito a ter, pelo menos, uma morte pacífica e com o mínimo de bem-estar.
O fenómeno cultural é dinâmico, o que implica o abandono de certas práticas para se dar lugar a novas, mais consentâneas com o sentimento geral da sociedade. É necessário fazer um esforço de adaptar os valores tradicionais aos valores modernos, sendo impossível que alguns ainda permaneçam nos dias de hoje, devido ao que implicam.
Por fim, a cultura é a massa que unifica e não a que divide. A tauromaquia nunca fez outra coisa que não dividir. Já é tempo dos touros serem deixados em paz.