Trabalhar durante o bruto estio

por Romão Rodrigues,    1 Fevereiro, 2023
Trabalhar durante o bruto estio
Fotografia de Christin Hume / Unsplash
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Trabalhar durante o bruto estio tem o ar da sua graça. A frase anterior não contém erros ou gralhas que procurem a rendição. A seca extrema que atravessa Portugal de lés a lés nada poderá indicar um estado de insanidade do autor – resultante no dito – mas o VAR da psique reverteu a situação e apontou para a marca da mera coincidência. Saliento, ainda, que no decurso do período laboral, o ar padecia da sua condição enquanto máquina que exala vento e trabalhava a meia atmosfera.

Um encarregado de armazém brasileiro, uma equipa recheada de jovialidade e expressões para mais tarde reavivar entram num bar e são empurrados porta fora, diariamente, porque o dono persiste em realizar o fecho. No meu caso, há três verões que não sou capaz de atingir a sobriedade ao nível da gargalhada. Daquela que é estridente e um incómodo para quem assiste. Emudecê-la nunca esteve nos meus planos, mesmo que o ambiente fosse pouco convidativo.

No sermão do mundo têxtil (que eu pouco conheço), o futebol e a verborreia associada constituem um dos sais da terra. Eduardo José Gonçalves e Luís Martins são adeptos do SL Benfica e do Moreirense FC, Ricardo Nuno é confesso fã do Sporting CP. Os encarnados afirmam “não discutir futebol com um sportinguista porque ele ganha de 20 em 20 anos” enquanto o menos maduro, com o meu auxílio, atalha a conversa para os casos de corrupção e afins. A D. Carla sorri, continua a prensar o que lhe é devido e não abre a boca.

A espaços, José Santos é invocado pela boca de Eduardo Gonçalves quando uma dúvida o assalta.

“O que quer?” – pergunta o encarregado.

“Já te disse mais do que uma vez que a catequese, no meu tempo, era ao sábado e eu faltava muito”. – responde o trocista.

Repare que a expressão “o que queres” se transforma, por intermédio de um método ainda não esventrado, em “a catequese é ao sábado”. O poder de imaginação é exclusivo.

A hora do lanche é sagrada. E curta. No auge da boa disposição, o encarregado dá 20 minutos. Na falésia, 15 minutos e o modo elefante ativado porque se demorou 16 e alguns segundos.

Rapidamente, a agulha discursiva aponta noutra direção. Entre quatro solteiros, febre pela anatomia e inúmeras saídas noturnas nas quais a retina trabalha um turno em supra rendimento, o assunto desagua – obviamente – em miúdas.

“Viste aquela gaja que estava no balcão, mesmo atrás de nós? Com um decote intimidatório (por vezes, o Luís baralha o sentido das palavras e tira uma carta à sorte) e uma saia que parecia um cinto?”

“Vi. Segundo os meus cálculos, estava boa para mim. Daquilo que vi, foi o que me pareceu.” – sentenciou Ricardo, de régua ao pescoço, presa por um atilho, não fosse o Santos verificar aquilo pela 18ª vez em cinco minutos.

A hora de almoço sinaliza a mixórdia com as gentes oriundas do escritório. A cantina é arejada, espaçosa e propícia ao convívio. O micro-ondas partilhado por sete ou oito pessoas. Os olhares dividem-se entre as refeições requentadas e as caras que ainda não foram objeto do estudo dos operários. Normalmente, o Eduardo José pergunta à Inês Moreira se ela quer ser realmente feliz ou se o vai continuar a ignorar. Ela esboça um sorriso envergonhado enquanto estala uma batata frita.

Come-se com relativa velocidade porque os puffs dispostos na parte traseira do armazém necessitam de mimo. As pálpebras podem até cerrar, mas às 14h o despertador volta a enraivecer-nos.

De tarde, por norma, o programa cruza a melodia oriunda da prensa com o ruído musical normalmente duvidoso dos colegas. MC’s de feitio variado ecoam pela coluna manhosa diariamente, assim como alguns hits nacionais e internacionais. ”Jardins Proibidos do Pedro Abrunhosa” e “qualquer música do John Peter Fathers” geram variações na goela e arrepios na espinha. Pelo meio, pode surgir um rap ao estilo do Carlão… membro dos Boss AC.

A D. Carla pergunta sempre pela hora do lanche às 15h. Precisão devia ser apelido e a partícula “dona” retirada, segundo a própria. “Faz-me velha e eu tenho um espírito jovem”, remata. Assola-a a falta de trabalho e o “estar queta”. A tesoura e a caneta que moram na sua algibeira não usufruem de liberdade de movimentos e possuem chip. Por sua vez, os provérbios e os ensinamentos comuns espalham-se por qualquer conversa. Esses e o outro, aquele sem nome e com uma experiência igual ao dos protagonistas de todas as estórias.

“Malta, 15 minutinhos agora pró lanche. Depois, é preciso andá dá perna. Temos muita coisa prá fazê.” – avisa o encarregado.

O estômago assimila muito pouco daquilo que se ingere porque a barriga dói de tanto rir. A cabeça não coordena o que resta do corpo porque está sobrelotada com estupidez. Volta-se à carga com ainda menos energia e menos paciência para as duas horas derradeiras. Nesse período, quando se aproxima o fim do mês, ninguém tinha resposta para a pergunta do queijinho. O Ricardo Nuno, friccionando o indicador e o polegar, inquire o resto da sala acerca de quando iria chover. Em dois meses e meio, ouviu-se, da sua boca, 46 vezes as palavras de ordem. Perdi o registo dos anos anteriores.

18:30h no relógio de parede. Tudo arrumado. Apontam-se as horas de produção e caminha-se a passo até ao portão. Ninguém tem pressa de voltar a casa e um pequeno muro guarda traseiros é albergue por 10/15 minutos. Parece que não, mas dá para muita gargalhada.

Contado, poucos acreditam. Lido, ainda menos. Gravado, redunda em inutilidade porque as câmaras dispostas no local de trabalho só captam movimentos. Se um dia regressar, lembrem-me de colocar em riste o Dictafone. Seria o podcast mais longo do Spotify, se exibido.

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