Um coito que não seja carnal
Olivares, Conde-Duque e grande entre os Grandes de Espanha, todos na corte viam e sabiam o porquê de andar ele de monco caído, de vez em quando suspendendo-se da atenção devida às causas da coroa, que eram assoberbantes e pertinazes além de aturadas, a requererem porfiadamente olho-vivo e mão de ferro sob pena de a caranguejola filipina vir abaixo e os seus inimigos virem ao de cimo. (Como deveras acabou por vir, mas isso foi mais tarde para o que ora interessa.) O que apoquentava Olivares era o caso de a sua idónea e cordeira esposa, embora proviesse de uma estripe de sangue comprovadamente anil e sadio, não lhe fornecer descendente para lhe perpetuar o nome, por mais que no tálamo oficiassem a Príapo.
A ciência destes assuntos à época era indiscutivelmente a teológica. Pelo que Olivares pediu remédio ao frade Villaescusa, ingente doutrinário e de piedade tão severa quanto o escrúpulo, portanto capacíssimo para achar solução à desdita. O beato antes de gastar por inteiro os 50 minutos da praxe da terapia conjugal já concluíra o diagnóstico. Desfazendo-se em louvores à castidade de D. Inês – o valido do Filipe tinha fama de ser figadal e ao cenobita não lhe apetecia torrar na pira da Inquisição – sempre foi dizendo que a Deus vexava muito ela anuir com insofrido e venal regozijo ao sisudo coito matrimonial assim convertido em fornicação animalesca. De modo que o Altíssimo relutava em deferir o livre curso da natureza, obviamente à Sua omnipotência sujeita.
Deu-se então que uma inspiração divina, disse ele, acometesse Villaescusa. O insigne matrimónio haveria de copular no coro da igreja de San Plácido, assistido pelas monjas, de modo a que sobre a união resplendesse a máxima santidade. Aspirava que assim abençoado do exercício procriativo se erradicasse o corpóreo e o mundano e fosse todo ele místico. Estavam destarte os cônjuges nisso, com toda a probidade e cerimónia, e a insidiosa matéria carnal lá descobriu atalho para alardear as suas incontinências. Pejou-se por conseguinte e imensamente o friso de freiras, e o Cristo na cruz pregado há-de ter ruborizado, com os roncos de Olivares a fazerem contraponto aos mugidos de Inês, ambos aos arrancos em cima o altar, e Villaescusa bradou aos céus em desespero – como pode ser que nem no imo do que é mais sagrado os humanos se eximam de pecar?
Esta cena picaresca saiu da imaginação de Gonzalo Torrente Ballester e é lida na novela “Crónica del rey pasmado” (1989), ou vista no filme quase homónimo (“El rey pasmado”, 1991) que o realizador Imanol Uribe deduziu do livro.
E à conta da paródia pinta-se na figura de Villaescusa o retrato escarrado do idealista ou, esticando a corda, do utópico.
Como se reconhece um idealista? É aquele que entende estar a natureza humana inçada de máculas e defeitos. E mais assevera que tentar resolvê-los com melhoramentos e rectificações é panaceia que não embarga recidivas. Há portanto, proclama ele, que extirpar a humanidade dos empecilhos ou inibições que a impedem de atingir a boa aventurança. O idealista é um radical, não crê que o aperfeiçoamento conduza à perfeição.
O idealista é um que já sabe para onde tudo se encaminha ou deve encaminhar. Nem sempre sublimando-se como um iluminado, o idealista é sempre um convicto. Norteado pela lei moral que tem acima dele e não dentro de si – nos tempos que correm os céus estão perpetuamente nublados e não se vêm as estrelas – o idealista tem juízo claro sobre donde provêm dos males do mundo.
Contudo, sucede sempre que as coisas não cabem, têm arestas, criam atritos, enfim recalcitram à evidente pureza, à impecável generosidade, à manifesta beleza dos valores do idealista. Pior ainda: há uns que persistem em não partilhar a visão, os horizontes e o progresso do idealista. Tomando-os por atacado como cínicos, destes ele esmiuçará a opinião de que ou são burros, perdão, ignorantes e carecem de ser instruídos, perdão, educados, que é a maneira de lhes serem inculcados os critérios certos; ou são malévolos, estão de má-fé e merecem castigo, o qual, no mínimo, será a exclusão e o esquecimento.
Ao fim e ao cabo o idealista é um déspota em embrião, à espera de oportunidade para, como o piedoso e caritativo Villaescusa, moldar o mundo à sua forma.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização