Um fio de Ariadne para pensar sobre tempo

por Comunidade Cultura e Arte,    4 Novembro, 2018
Um fio de Ariadne para pensar sobre tempo
Fotografia de Luís Belo
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Todo conhecemos a velha história de Penélope: mulher que espera, e enquanto espera tece e destece a manta do tempo. E a razão porque desfaz o que teceu é o adiamento, a vontade insuperável de que durem mais os minutos: que o tempo abrande, tudo aconteça mais devagar.

No dia 3 de Novembro, na Casa da Ribeira, em Viseu, abriram-se as portas da mais recente exposição de Ana Seia de Matos, que por lá fica até 28 de Janeiro de 2019. Trata-se de um conjunto de obras que se debruçam sobre o conceito de contemplação. Para a autora, movimento associado a um outro género de relação com o tempo, como se pudéssemos, ao contemplar, abstrair-nos do movimento acelerado do mundo. Contemplar como abrandar. E é num suporte muito próximo do de Penélope que Ana constrói um manifesto à lentidão. Chama-se Alentar, e é composto por este conjunto de obras (Contemplação), e outros que têm em comum com este a técnica: o bordado.

Fotografia de Luís Belo

A exposição Contemplação é composta por dois conjuntos de obras: um conjunto periférico que, mais que objectos de contemplação, mostram movimentos contemplativos: vemos pessoas que param, olham para o que as rodeia ou focam-se numa qualquer paisagem, distante porque de olhos fechados. Os lugares em que concretizam o movimento são-nos familiares: reconhecemos as janelas do Museu Almeida Moreira, os painéis do Museu Nacional Grão Vasco. Museus da cidade, lugares que já visitámos. Afinal, eles somos nós. Num segundo conjunto, a que Seia de Matos se refere como núcleo, ou nuclear, seis painéis bordados sobre serapilheira mostram-nos pessoas vendadas. A textura do material torna-se áspera, os traços grossos, reduz-se a representação a duas cores: o castanho da serapilheira e o preto da linha. Nesses painéis vemos pessoas vendadas, a presença constante de tecido que ameaça colocar-se entre nós e o quadro. Num dos painéis somos mesmo confrontados com uma figura (autorretrato da autora) que está de frente para nós, olhos vendados, segurando nas mãos um pano que parece – se ao movimento dessemos continuidade… – ameaçar tapar a tela: impedir-nos de ver. Num outro, o único que nos dá a sensação de um espaço tridimensional, arquitetónico, vemos a sucessão de salas de uma galeria – e as obras expostas estão tapadas. Fazendo de um conjunto de obras sobre a impossibilidade de ver o núcleo de uma exposição sobre contemplação, Seia de Matos formula o argumento da exposição, parece-me: a impossibilidade de ver, há entre nós e o que vemos figuras vendadas, e a venda que nos colocam. E estas figuras? Os preconceitos, a falta de informação, os discursos superficiais que tendem a manchar cada vez mais frequentemente a vida em comunidade, a política, a relação com a Arte. Mas figura maior, neste caso, talvez seja o tempo, ou a falta dele. Não é um discurso sobre como estar no museu, mas um desabafo sobre como poderíamos estar na vida.

Fotografia de Luís Belo

O tempo fica impresso numa obra de arte não só pelo seu discurso, senão também pelo tempo que leva a concretizar, este tempo real. Fico encantado quando penso que há, nestas obras de Ana Seia de Matos, a ponta de um fio que passou por todo o desenho. A geografia de um quadro é labirinto complexo, neste caso Ariadne é bem evidente: podemos, se quisermos, conhecer os caminhos, com seus deslumbramentos e obstáculos, de Ana.

A exposição Alentar – Contemplação, está patente na Casa da Ribeira, em Viseu, até dia 28 de Janeiro.

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