Um meteoro futurista chamado Santa-Rita Pintor
Entre os futuristas e os modernistas que desenharam, escreveram e pintaram as primeiras décadas do século XX em Portugal, entre Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Mário de Sá-Carneiro, emerge uma figura particular. Isto não só pelo nome, mas também pela apresentação excêntrica e pela arte vanguardista que viaja para mais longe do que a dos seus colegas. Esta figura é Guilherme de Santa-Rita Pintor, nascido com o nome de Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa Rita a 31 de outubro de 1889, na cidade de Lisboa. Apesar de viver por um período bem abreviado — morreria a 29 de abril de 1918, ainda antes de completar 29 anos —, a sua obra deixou uma marca indelével quando se relembra a voraz passagem do futurismo em Portugal, sem esquecer as passagens pela “Orpheu” ou pela “Portugal Futurista”. Porém, ainda são mais as interrogações que as declarações no que toca à sua vida, permanecendo um enigma por ser devidamente descodificado e, como tal, fazendo parte do já extenso imaginário coletivo artístico nacional.
Santa-Rita Pintor cresceu numa família que deu vários artistas — o irmão, Augusto, foi escritor, assim como o outro irmão, Mário, mais voltado para a poesia. Viria a formar-se na Escola de Belas-Artes de Lisboa — então Academia Real de Belas Artes — com uma média de 18 valores. À imagem dos seus colegas artísticos, viajaria para a cidade onde tudo acontecia então, Paris, e, por lá, esteve quatro anos, regressando por força da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Uma das aparentes razões que o levou a emigrar foi o seu acérrimo apoio à monarquia, que caiu nesse ano de 1910 e que viria a apresentar-lhe alguns desafios, como dificuldades na obtenção de bolsas de estudo.
As influências que por lá colheu, incluindo a própria convivência que travou com o cubista Picasso, o expressionista Max Jacob e o proponente do futurismo, Guido Marinetti, futurismo este com que se deparou, pela primeira vez, em 1912, na Galerie Berheim-Jeune, numa exposição feita por Marinetti e pelo pintor Umberto Boccioni, a primeira dos futuristas. De igual forma, fortaleceria laços com alguns futuros comparsas seus nas publicações modernistas em solos português, como o poeta Mário de Sá-Carneiro, que serviria de ponte para o ingresso de Santa-Rita Pintor nas ligações entre os modernistas.
As influências do exterior que trouxe tornaram-se providenciais para que a sua colaboração na “Orpheu”, revista tutelada por Pessoa e Almada Negreiros que se cingiu a duas edições, se mostrasse evidente através das pinturas e colagens reproduzidas na revista. Era o reflexo de uma mente agitada e excêntrica, sempre à procura do caminho da diferenciação e do fomento de um pensamento cada vez mais veloz, despoletado pela força do futurismo. De igual modo, refletia-se no porte, começando a vestir-se de forma inusitada e a usar um chapéu que lhe escondia o rosto. Revestia-se, assim, de traços caraterísticos bastante complexos, com uma excentricidade e com um sentido provocatório na sua arte e no seu pensamento que contrastava com a sua apologia da monarquia, conservadora e arreigada aos velhos costumes sociais e artísticos.
No que toca a publicações, depois da “Orpheu” — cuja manutenção em circulação foi uma das causas frustradas da sua vida —, seguiu-se a “Portugal Futurista”, publicada em novembro de 1917 e dirigida pelo artista e escritor Carlos Filipe Porfírio, que contou com muitos dos membros da “Orpheu”, incluindo os autores Raul Leal ou Fernando Pessoa e os demais artistas Almada Negreiros ou predicados que absorveu na sua vivência. Quem beneficiaria em muito deste fulgor seria o amarantino Amadeo de Souza Cardoso, com quem partilhou estúdio e, também ele, um modernista e que também singrou em Paris, mas que fez a sua obra perdurar mais pelo tempo.
Nesta Portugal Futurista, onde contribuiu com muito do espírito e da missão do projeto — era, de facto, o líder conceptual e espiritual desta publicação, apresentaria quatro dos seus trabalhos, nomeadamente as suas decomposições geométricas a preto-e-branco, dos poucos que restam atualmente do seu pecúlio. Entre estas, em muito submergidas no cubismo de Picasso e de Braque e no tal futurismo, não só de Marinetti e de Boccioni, mas também de outros compatriotas destes, como Carlo Carrá ou Gino Severini, “Perspetiva Dinâmica de Um Quarto ao Acordar”, um dos tais exercícios de Santa-Rita Pintor que se tornou perene.
O grande pulsar do futurismo em Portugal ainda se resumia à escrita — por exemplo, no heterónimo pessoano Álvaro de Campos —, pelo que o grande esforço nas artes plásticas partiu do próprio Santa-Rita Pintor, apesar de somente ter exposto em França. Organizaria e coordenaria, assim, ao lado de Almada Negreiros, uma célebre sessão no Teatro da República, no fértil ano de 1917, a 14 de abril, onde foram lidos documentos de Marinetti — que procurou editar e divulgar — e da artista Valentine de Saint-Point, autora do “Manifeste Futuriste de la Luxure” (1913), e até um outro manifesto foi anunciado e apresentado, o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”.
No entanto, e apesar de uma plateia seleta, composta por estudantes e outros intelectuais modernistas, gerou alguma controvérsia sobre aquela singular expressão artística, tão crítica daquilo que era comumente aceite e que gerava a mesma apreensão política (e moral) que já havia obstaculizado à distribuição da própria revista “Portugal Futurista”. Foi essa mesma oposição e apreensão que encaminhou muitas das suas edições a serem apreendidas logo depois da revista ser publicada. Em obra feita, subsistiu a “Cabeça” (c. 1910, ainda no papel de estudante) que pintou e que mostrou os predicados que absorveu na sua vivência, num cruzamento entre os ventos cubistas de Picasso e o próprio futurismo que importou para a sua arte.
São marcos de uma filosofia artística que se pautou pelos valores do futurismo, submerso nos diálogos que convidam a desafiar os limites da visualidade e do ambiente bidimensional. Para isso, conta com a utilização de figuras mobiliárias – o próprio termo indica movimento – para os desconstruir, a estas e aos planos figurativos, e os colocar ao serviço da dinâmica veloz e descoordenada. À disposição, deixa várias combinações de formas e de feitios, num cruzamento sadio entre intuição e razão. O cruzamento de superfícies e das suas linhas e das dimensões que são construídas denuncia conceitos ainda maiores e mais complexos, com especial enfoque no corpo humano.
Trata-se de um jogo, entre os mencionados cruzamentos e combinações, entre decomposições e desconstruções à boa maneira da arte abstrata, com explorações contínuas quanto ao uso e à fragmentação da cor ao serviço da composição e da arquitetura desta. Para catalogar estes seus trabalhos, empregava frases extensas que indicavam a mecanicidade do futurismo, mas também a constante necessidade de permanecer imprevisível, inquieto e desafiador dos discursos correntes da arte, distante dos protocolos culturais existentes e chegados a um ideal de vida e de dinâmica pensante e atuante.
A sua morte, vitimado por uma tuberculose no ano de 1918, viria a acentuar o misticismo em torno de Santa-Rita Pintor. Segundo se consta, a pedido do próprio, a sua obra seria destruída pela família e as poucas pistas que subsistem para se desmistificar a sua vida seguem no conto de Mário de Sá-Carneiro, “A Confissão de Lúcio” (escrito ainda em vida de Santa-Rita Pintor, no ano de 1913), na personagem de Gervásio Vila-Nova, um escultor falido. De igual modo, para além da referida “Cabeça”, ainda restam parcos marcos da sua carreira, como a pintura “Orfeu nos Infernos” [a datação é incerta], de cariz expressionista e que traz um rasgo satírico e invulgar perante o naturalismo vigente então) ou as referidas decomposições geométricas que foi fazendo e que foram transpostas para o papel. São registos cuja tutela oscila entre o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, e o próprio Ministério da Cultura. Pelo caminho, ficaram, por exemplo, “O Ruído num Quarto sem Móveis”, exposto no Salon de Indépendents, em Paris, mas que se tornaria incógnito.
Santa-Rita Pintor foi, à imagem do também malogrado Mário de Sá-Carneiro, um meteoro no espectro da cultura portuguesa, proporcionalmente à manifestação do próprio futurismo em Portugal. Ambos com uma vida muito curta (Sá-Carneiro suicidar-se-ia aos 25 anos em Paris), mas amiúde relembrada de forma quase mística e distante. No que toca a Santa-Rita Pintor, ainda mais se diferencia, pois pouca obra palpável resta nos dias de hoje, ao contrário da poesia de Sá-Carneiro. De igual modo, a excentricidade dos seus modos e dos costumes ainda adensam mais o mistério em volta desta figura tão particular e que tão estreita ligação estabeleceu com Fernando Pessoa ou Almada Negreiros. Poder-se-ia compará-lo ao fenómeno que foi António Variações, surgido poucas décadas depois, mas tamanha ausência de obra feita à mão abre mais espaço a que se especule. Desde o nome aos instintos artísticos, Santa-Rita Pintor convida a que se vá ainda mais a fundo para que se apurem mais verdades e mais esclarecimentos. Em suma, sobre o seu passado, mais futuro.