Um meteoro futurista chamado Santa-Rita Pintor

por Lucas Brandão,    13 Novembro, 2022
Um meteoro futurista chamado Santa-Rita Pintor
Santa-Rita Pintor. retrato reproduzido na revista “Portugal Futurista”, em 1917
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Entre os futuristas e os modernistas que desenharam, escreveram e pintaram as primeiras décadas do século XX em Portugal, entre Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Mário de Sá-Carneiro, emerge uma figura particular. Isto não só pelo nome, mas também pela apresentação excêntrica e pela arte vanguardista que viaja para mais longe do que a dos seus colegas. Esta figura é Guilherme de Santa-Rita Pintor, nascido com o nome de Guilherme Augusto Cau da Costa de Santa Rita a 31 de outubro de 1889, na cidade de Lisboa. Apesar de viver por um período bem abreviado — morreria a 29 de abril de 1918, ainda antes de completar 29 anos —, a sua obra deixou uma marca indelével quando se relembra a voraz passagem do futurismo em Portugal, sem esquecer as passagens pela “Orpheu” ou pela “Portugal Futurista”. Porém, ainda são mais as interrogações que as declarações no que toca à sua vida, permanecendo um enigma por ser devidamente descodificado e, como tal, fazendo parte do já extenso imaginário coletivo artístico nacional.

Santa-Rita Pintor cresceu numa família que deu vários artistas — o irmão, Augusto, foi escritor, assim como o outro irmão, Mário, mais voltado para a poesia. Viria a formar-se na Escola de Belas-Artes de Lisboa — então Academia Real de Belas Artes — com uma média de 18 valores. À imagem dos seus colegas artísticos, viajaria para a cidade onde tudo acontecia então, Paris, e, por lá, esteve quatro anos, regressando por força da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Uma das aparentes razões que o levou a emigrar foi o seu acérrimo apoio à monarquia, que caiu nesse ano de 1910 e que viria a apresentar-lhe alguns desafios, como dificuldades na obtenção de bolsas de estudo.

Revista “Portugal Futurista” – Número 1, 1917 / Fundação Calouste Gulbenkian

As influências que por lá colheu, incluindo a própria convivência que travou com o cubista Picasso, o expressionista Max Jacob e o proponente do futurismo, Guido Marinetti, futurismo este com que se deparou, pela primeira vez, em 1912, na Galerie Berheim-Jeune, numa exposição feita por Marinetti e pelo pintor Umberto Boccioni, a primeira dos futuristas. De igual forma, fortaleceria laços com alguns futuros comparsas seus nas publicações modernistas em solos português, como o poeta Mário de Sá-Carneiro, que serviria de ponte para o ingresso de Santa-Rita Pintor nas ligações entre os modernistas.

As influências do exterior que trouxe tornaram-se providenciais para que a sua colaboração na “Orpheu”, revista tutelada por Pessoa e Almada Negreiros que se cingiu a duas edições, se mostrasse evidente através das pinturas e colagens reproduzidas na revista. Era o reflexo de uma mente agitada e excêntrica, sempre à procura do caminho da diferenciação e do fomento de um pensamento cada vez mais veloz, despoletado pela força do futurismo. De igual modo, refletia-se no porte, começando a vestir-se de forma inusitada e a usar um chapéu que lhe escondia o rosto. Revestia-se, assim, de traços caraterísticos bastante complexos, com uma excentricidade e com um sentido provocatório na sua arte e no seu pensamento que contrastava com a sua apologia da monarquia, conservadora e arreigada aos velhos costumes sociais e artísticos.

No que toca a publicações, depois da “Orpheu” — cuja manutenção em circulação foi uma das causas frustradas da sua vida —, seguiu-se a “Portugal Futurista”, publicada em novembro de 1917 e dirigida pelo artista e escritor Carlos Filipe Porfírio, que contou com muitos dos membros da “Orpheu”, incluindo os autores Raul Leal ou Fernando Pessoa e os demais artistas Almada Negreiros ou predicados que absorveu na sua vivência. Quem beneficiaria em muito deste fulgor seria o amarantino Amadeo de Souza Cardoso, com quem partilhou estúdio e, também ele, um modernista e que também singrou em Paris, mas que fez a sua obra perdurar mais pelo tempo.

Nesta Portugal Futurista, onde contribuiu com muito do espírito e da missão do projeto — era, de facto, o líder conceptual e espiritual desta publicação, apresentaria quatro dos seus trabalhos, nomeadamente as suas decomposições geométricas a preto-e-branco, dos poucos que restam atualmente do seu pecúlio. Entre estas, em muito submergidas no cubismo de Picasso e de Braque e no tal futurismo, não só de Marinetti e de Boccioni, mas também de outros compatriotas destes, como Carlo Carrá ou Gino Severini, “Perspetiva Dinâmica de Um Quarto ao Acordar”, um dos tais exercícios de Santa-Rita Pintor que se tornou perene.

O grande pulsar do futurismo em Portugal ainda se resumia à escrita — por exemplo, no heterónimo pessoano Álvaro de Campos —, pelo que o grande esforço nas artes plásticas partiu do próprio Santa-Rita Pintor, apesar de somente ter exposto em França. Organizaria e coordenaria, assim, ao lado de Almada Negreiros, uma célebre sessão no Teatro da República, no fértil ano de 1917, a 14 de abril, onde foram lidos documentos de Marinetti — que procurou editar e divulgar — e da artista Valentine de Saint-Point, autora do “Manifeste Futuriste de la Luxure” (1913), e até um outro manifesto foi anunciado e apresentado, o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”.

“Cabeça = linha – força. Complementarismo orgânico” (1913)

No entanto, e apesar de uma plateia seleta, composta por estudantes e outros intelectuais modernistas, gerou alguma controvérsia sobre aquela singular expressão artística, tão crítica daquilo que era comumente aceite e que gerava a mesma apreensão política (e moral) que já havia obstaculizado à distribuição da própria revista “Portugal Futurista”. Foi essa mesma oposição e apreensão que encaminhou muitas das suas edições a serem apreendidas logo depois da revista ser publicada. Em obra feita, subsistiu a “Cabeça” (c. 1910, ainda no papel de estudante) que pintou e que mostrou os predicados que absorveu na sua vivência, num cruzamento entre os ventos cubistas de Picasso e o próprio futurismo que importou para a sua arte.

São marcos de uma filosofia artística que se pautou pelos valores do futurismo, submerso nos diálogos que convidam a desafiar os limites da visualidade e do ambiente bidimensional. Para isso, conta com a utilização de figuras mobiliárias – o próprio termo indica movimento – para os desconstruir, a estas e aos planos figurativos, e os colocar ao serviço da dinâmica veloz e descoordenada. À disposição, deixa várias combinações de formas e de feitios, num cruzamento sadio entre intuição e razão. O cruzamento de superfícies e das suas linhas e das dimensões que são construídas denuncia conceitos ainda maiores e mais complexos, com especial enfoque no corpo humano.

Trata-se de um jogo, entre os mencionados cruzamentos e combinações, entre decomposições e desconstruções à boa maneira da arte abstrata, com explorações contínuas quanto ao uso e à fragmentação da cor ao serviço da composição e da arquitetura desta. Para catalogar estes seus trabalhos, empregava frases extensas que indicavam a mecanicidade do futurismo, mas também a constante necessidade de permanecer imprevisível, inquieto e desafiador dos discursos correntes da arte, distante dos protocolos culturais existentes e chegados a um ideal de vida e de dinâmica pensante e atuante.

A sua morte, vitimado por uma tuberculose no ano de 1918, viria a acentuar o misticismo em torno de Santa-Rita Pintor. Segundo se consta, a pedido do próprio, a sua obra seria destruída pela família e as poucas pistas que subsistem para se desmistificar a sua vida seguem no conto de Mário de Sá-Carneiro, “A Confissão de Lúcio” (escrito ainda em vida de Santa-Rita Pintor, no ano de 1913), na personagem de Gervásio Vila-Nova, um escultor falido. De igual modo, para além da referida “Cabeça”, ainda restam parcos marcos da sua carreira, como a pintura “Orfeu nos Infernos” [a datação é incerta], de cariz expressionista e que traz um rasgo satírico e invulgar perante o naturalismo vigente então) ou as referidas decomposições geométricas que foi fazendo e que foram transpostas para o papel. São registos cuja tutela oscila entre o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, e o próprio Ministério da Cultura. Pelo caminho, ficaram, por exemplo, “O Ruído num Quarto sem Móveis”, exposto no Salon de Indépendents, em Paris, mas que se tornaria incógnito.

“Orfeu nos Infernos”

Santa-Rita Pintor foi, à imagem do também malogrado Mário de Sá-Carneiro, um meteoro no espectro da cultura portuguesa, proporcionalmente à manifestação do próprio futurismo em Portugal. Ambos com uma vida muito curta (Sá-Carneiro suicidar-se-ia aos 25 anos em Paris), mas amiúde relembrada de forma quase mística e distante. No que toca a Santa-Rita Pintor, ainda mais se diferencia, pois pouca obra palpável resta nos dias de hoje, ao contrário da poesia de Sá-Carneiro. De igual modo, a excentricidade dos seus modos e dos costumes ainda adensam mais o mistério em volta desta figura tão particular e que tão estreita ligação estabeleceu com Fernando Pessoa ou Almada Negreiros. Poder-se-ia compará-lo ao fenómeno que foi António Variações, surgido poucas décadas depois, mas tamanha ausência de obra feita à mão abre mais espaço a que se especule. Desde o nome aos instintos artísticos, Santa-Rita Pintor convida a que se vá ainda mais a fundo para que se apurem mais verdades e mais esclarecimentos. Em suma, sobre o seu passado, mais futuro.

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