Um passeio pela Florença de 1490
À semelhança de outros títulos da série, como os dedicados à Atenas ou à Roma da Antiguidade, Florença Renascentista por Cinco Florins ao Dia constrói-se como um guia de viagens ficcional. Sempre em registo irónico e descontraído, sem abdicar do rigor da informação pertinente – e da adicional, mas em todas as ocasiões servida com equilíbrio e propósito –, Charles Fitzroy procede como se dirigisse as suas digressões a visitantes da república florentina durante o ano de 1490. Motivo pelo qual as descrições e retratos de época possuem o colorido, a vivacidade e o dinamismo de uma apresentação presente. Políticos e artistas, banqueiros e filósofos, factos históricos e edifícios públicos, equipamentos destinados ao quotidiano citadino, o próprio movimento da urbe, surgem como realidades vitais, em vez de se fixarem estaticamente como lembranças distantes.
A escolha da cidade toscana e da última década do século XV é, obviamente, deliberada. Ao fazê-la, o autor elege um pólo fundamental dos alvores do Renascimento. Desde o tempo de Cosme de Médicis, avô de Lourenço, o Magnífico, que Florença apoia as artes, fomenta a arquitectura e fornece o terreno mais fértil para o pensamento e o estudo. Conforme se lê num iluminador passo do grande erudito Marsilio Ficino, citado em Florença Renascentista: «Vivemos numa época de ouro, que trouxe de regresso à vida as quase extintas disciplinas liberais da poesia, eloquência, pintura, arquitectura, escultura, música e canto acompanhado por lira órfica. E tudo isto em Florença!» (p.59) O Banco dos Médicis era o centro nevrálgico da economia florentina. Nesta cidade onde o dinheiro e a política eram pilares fundamentais, tudo foi possível graças à prosperidade da grande família – seguida de perto pelos rivais Strozzi –, verdadeira oligarquia dinástica que teve nas mãos os destinos do burgo durante várias décadas, antes de cair em desgraça (fora do âmbito temporal do nosso guia).
A cidade que viu nascer Maquiavel (em 1490, ainda um jovem de 21 anos) refinou a actividade da política, erguendo-a ao plano de uma complexa arte com as suas regras e os seus múltiplos cultores. Sobretudo, com as suas zonas obscuras. Nesta intrincada teia de relações e cargos, por exemplo, os Médicis conseguiram, «com grande subtileza» (Fitzroy), garantir, ao longo do tempo, uma influência constante no palco das mais importantes decisões. Sobretudo a partir da época de Cosme, o Velho, controlando a banca, a família mantinha sob controlo não só a área financeira, mas o fatal triângulo sociedade-arte-política. Uma confluência naturalíssima numa cidade como Florença, onde a política era, como lembra o nosso autor, uma autêntica obsessão. «Ao todo», conforme informa Fitzroy, «chega-se ao incrível total de 3000 cargos [políticos] que vagam e são preenchidos anualmente» (p.48).
No momento em que o leitor encontra Florença, a cidade encontra-se no seu apogeu. O seu perfil redefine-se e aprimora-se à medida que se caminha para o fim de Quatrocentos – «mais de trinta [palácios] foram construídos de raiz nos últimos cinquenta anos, e muitas das torres que eram uma característica dominante do perfil da cidade foram demolidas» (p.28). Os maiores artistas e pensadores convergem para a república florentina, fazendo dela um autêntico museu a céu aberto. Não só os nascidos em Florença, como Leonardo (oriundo dos arredores da cidade, como Ficino, que era natural da área metropolitana de Florença, como diríamos hoje), Botticelli ou Ghirlandaio, mas também os originários de outras paragens, como o mais ilustre discípulo de Ficino, Pico della Mirandola (outro dos discípulos de Ficino fora Lourenço, o Magnífico).
Nesta cidade de artistas, é possível captar os mais curiosos flagrantes da vida e prática dos seus pintores e escultores – «Ucello estava de tal maneira maravilhado pela perspectiva que, segundo se diz, a mulher não conseguia convencê-lo a deixar os desenhos e deitar-se.» (p73); «Dizia-se que Fra Angelico era tão religioso que chorava de emoção sempre que pintava um crucifixo.» (p.77) Florença pulula, ainda, de histórias de rivalidades (benignas ou fatais) e invejas, de apreço e superação – «Verrochio, que morreu há dois anos, era um excelente pintor, além de escultor, mas consta que abandonou a pintura quando viu a beleza de um anjo pintado pelo seu talentoso discípulo Leonardo da Vinci.» (p.68); «Quando Donatello viu pela primeira vez a estátua de Bruneleschi, e percebeu que tinha sido completamente ultrapassado, ficou tão espantado que deixou cair o avental em que levava o almoço para casa, partindo os ovos de encontro ao chão.» (p.73)
Uma vez que Florença Renascentista pretende ser – e é – um guia turístico para o visitante de um século XV imaginado como presente, é precisamente essa a sua abordagem. Desde o ponto mais elevado, na hierarquia dos gostos – «O primeiro local a ver na sua visita a Florença é a Piazza del Duomo. Os três edifícios que dão para a praça – a catedral (localmente conhecida como Duomo, embora o seu nome seja Santa Maria del Fiore), o baptistério e o campanário (campanile) – formam um conjunto magnífico.» (p.60) –, até àquele que desce mais fundo – «se é impressionável, não olhe para a água [do Arno]; está completamente descolorida por uma mistura de lixo, esgoto, entranhas de animais, sabão, tanino e vários corantes» (p.34) –, a apreciação é feita em regime presencial, num tempo (verbal e não só) que impõe, sedutoramente, a sua dinâmica própria.
Florença Renascentista por Cinco Florins é um excelente guia turístico para o leitor do século XXI que pretenda sentir-se como se visitasse a cidade de Florença da última década do século XV.