Um quebra-cabeças sublime
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Esta semana que passou, um quadro velho existente numa casa perto de Oxford que tinha sido considerado do século XIX e avaliado em 600 libras foi descoberto como sendo obra de um aluno de Van Dyck e vendido em leilão por 500 000 libras. O quadro representa o evangelista João e constitui um retrato imaginário bem curioso do Discípulo Amado de Jesus. Os traços do rosto são mais «humanos» do que habitualmente vemos nos retratos imaginários de João – e também mais masculinos. É sabido que a tradição pictórica ocidental optou quase sempre por retratar o Discípulo Amado como alguém cujos traços femininos quase possibilitariam a identificação com Maria Madalena.
Apesar de tudo, o aluno de Van Dyck quis representar João como homem seguro da sua masculinidade e focado na lonjura do sublime – talvez a meditar o extraordinário quebra-cabeças que é o seu Evangelho, sobretudo se dele procurarmos extrair uma resposta clara sobre quem é Jesus.
Pois, por um lado, o Evangelho de João afirma que o Filho de Deus é igual de Deus (1:18, 5:18, 10:29-30, 33, 38; 14:10-11; 16:32; 17:5, 11, 21). De forma lapidar, «Eu e o Pai somos um» (10:30).
Mas, por outro lado, João afirma que o Filho está subordinado ao Pai (5:19, 30; 7:16; 8:16, 28; 12:49; 14:10, 28). De forma lapidar, «O Pai é maior do que eu» (14:28).
Também nos afirma, por um lado, que Jesus não veio para julgar o mundo (3:17; 12:47). Jesus afirma que não julga ninguém (8:15) e que Deus é que julga (8:50).
Mas, por outro lado, João diz-nos que o Pai confiou o julgamento ao Filho (5:22) e que é para julgar que Jesus veio ao mundo (9:39). É-nos dito também que os julgamentos de Jesus são justos (5:30; 8:26).
De forma mais surpreendente ainda, é-nos dito também que o Pai e o Filho julgam o mundo, conjuntamente (8:16).
O Evangelho de João afirma que a luz verdadeira que ilumina todos é Jesus (1:9), o que parece sugerir um acesso universal a Deus, ao mesmo tempo que o próprio Jesus reconhece e aceita muitas ovelhas que não são «deste redil» (10:16). «Também a essas eu tenho de conduzir e escutarão a minha voz e devirão um rebanho, um pastor».
Este «rebanho» mencionado por Jesus, formado pelas ovelhas que estão fora e dentro «deste redil», teve um destino curioso no pensamento católico, em virtude de a Vulgata ter traduzido a palavra «rebanho» novamente por «redil». A frase que em grego diz «devirão um rebanho, um pastor» (γενήσονται μία ποίμνη, εἷς ποιμήν) tornou-se em latim «fiet unum ovile, unus pastor».
Por incrível que pareça em 2018, ainda vemos vestígios da frase latina e da sua forma verbal «fiet» nalgumas traduções católicas da Bíblia («haverá um só rebanho e um só pastor»), que assim introduzem no quebra-cabeças geral que é o Evangelho de João um quebra-cabeças suplementar, do qual não havia necessidade.