Uma chama iluminou o Festival Literário Utopia 

por Mário Rufino,    6 Novembro, 2023
Uma chama iluminou o Festival Literário Utopia 
Fotografia via Facebook de Utopia Braga
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O primeiro fim-de-semana do Festival Literário Utopia recebeu o espectáculo “O Que a Chama Iluminou”, criado para estrear na Capela Imaculada, em Braga. 
Afonso Cruz, Mariana Ramos Correia e Joaquim Madaíl miscigenaram expressões artísticas numa história feita de imagens, música e palavras.  

As histórias fazem parte do nosso grupo sanguíneo. Desde sempre que nos conhecemos através das narrativas endossadas. Conhecemo-nos nas palavras dos outros e, dentro da nossa cabeça, tornamo-nos mais habitáveis com as narrativas que criamos. 

Afonso Cruz tem razão quando, em “Os Livros que Devoraram o Meu Pai”, diz que não somos só feitos de carne e osso e sangue. Somos feitos de histórias. E estas são contadas oralmente, por escrito, dramatização e imagem. Disciplinas que o autor de “Jalan, Jalan” juntou com Mariana Ramos Correia (voz, violoncelo e dramatização) no espectáculo “O Que a Chama Iluminou” (direcção técnica de Joaquim Madaíl), criado para o Festival Literário Utopia, em Braga. 

Fotografia via Facebook de Utopia Braga

A Capela Imaculada, construída ena década de 1940, foi o palco para uma hora de histórias que cruzam o individual e o universal, geografias distantes e o local, tempos longínquos e a actualidade. 
O ponto de partida foi uma viagem do escritor ao Chile e à Patagónia, em 2019. A convulsão social do Chile fervilhava de princípios e fins, em suma, de mudança. A insatisfação com a classe política relembrava a ditadura de Pinochet e os assassinatos com o pretexto de se estar numa guerra contra os anti-patriotas. A frase “Não Estamos em Guerra” foi grafitada para não justificar a repressão violenta pelas autoridades policiais. Pinochet havia justificado as mortes com a frase “Estamos em Guerra”.  
Afonso Cruz foi apanhado numa manifestação e, não fosse um golpe de sorte, não estaria cá para contar. 

Muita gente morreu nas manifestações de 2019. A dor das mães dos assassinados por Pinochet ficou em carne viva. O deserto esconde os mortos, e as mães procuram-nos. Não há corpo para o luto. 
Fotos e vídeos foram projectados numa tela na Capela enquanto Afonso Cruz contava as suas histórias e tocava as suas músicas.   

Os fins e os princípios não se resumem a um lugar e a um tempo. O ciclo “Geografias”, iniciado com o “Principio de Karenina”, passado na Cochinchina, e “Sinopse de Amor e Guerra”, em Berlim, tem em “O que a Chama Iluminou” mais um território. A universalidade das histórias une o que a distância separa.  
A dor das mães chilenas é partilhada pelos pais dos indígenas levados pelos ingleses, na Patagónia, para serem educados em Inglaterra, com o objectivo de ajudar as trocas comerciais entre os dois povos. Em contrapartida, os ingleses davam um botão por cada criança levada. Houve uma que deixou história: Jemmy Button, ou melhor dizendo, Orundellico.  

Fotografia via Facebook de Utopia Braga

Orundellico foi um indígena fuegino yagane das ilhas da Terra do Fogo (actual Argentina e Chile). Foi levado pelo capitão Fitzroy no HMS Beagle. Quando o navio regressou à Terra do Fogo, um ano depois e sem Orundellico, levava um nome que viria a resistir ao tempo. Um homem com ideias revolucionárias: Charles Darwin. 

Quando Jemmy regressou à Patagónia, renunciou à cultura ocidental. Rasgou as roupas e passou a andar de tanga. Não mais quis voltar à Europa. Este contemporâneo de Darwin morreu em casa, em 1886. Waite Stirling viria a pegar num dos filhos de Jemmy e levá-lo-ia para Inglaterra. O drama individual cruza-se com a universalidade da dor, da migração, do racismo e assimilação cultural. 
 
Afonso Cruz e Mariana Ramos Correia envolveram tudo num corpo coerente, poliédrico e universal. No fim, foram aplaudidos de pé. 

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