Uma família às esquerdas
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Antes de continuar, convém dizer que sou de esquerda, sempre votei esquerda e, inclusivamente, o meu voto nas últimas eleições recaiu sobre este governo. Pronto, agora que já provei que não sou um fascista, coisa que hoje em dia se tem de fazer cada vez que se chama a atenção a um canhoto, acho que posso falar de uma coisa que me tem caído um bocado mal neste executivo: as relações familiares entre membros do mesmo.
Atenção, não é o facto de haver primos, tios, sobrinhos, filhos, maridos e mulheres no governo que me chateia, bem pelo contrário. Aliás, numa altura em que tanto se critica o centralismo lisboeta, até acho bonito este executivo fazer tudo para se parecer mais com uma aldeia do interior. É tudo parente! O que me intriga é como é que se consegue trabalhar ali. É que eu tenho experiência no assunto, não só venho de uma família que criou um negócio em conjunto, como eu também já trabalhei com namoradas e… não é nada fácil.
A verdade é que, por mais que não se queira, ter familiares no local de trabalho não é positivo. Ok, tudo bem que, na teoria, um parente tem menos tendência a passar a perna a outro, no entanto também é mais provável irromper pelo escritório adentro enquanto estás em reunião para te perguntar se queres lulas recheadas para jantar, se sempre vais à festa dos 80 anos da Tia Matilde ou quem é a Marta e porque é que ela tem like em todas as tuas fotos de Instagram. Parecendo que não, isto desconcentra um gajo. Especialmente um gajo cujo trabalho já é, muitas vezes, inventar desculpas para sacar mais um imposto à populaça e agora também tem de pensar numa justificação plausível para a existência da Marta. Depois admiramo-nos quando vemos os debates quinzenais e anda tudo aos berros. Pudera, aquilo já não é um parlamento, é uma reunião de família!
No entanto, não posso deixar de me rir com a maneira como a direita portuguesa se tem sentido ofendida com esta consanguinidade governativa quando nos seus governos não há parentes, mas há amigos, que, segundo Edna Buchman (chupa, Comunidade Cultura e Arte!), “são a família que nós escolhemos”. Passos e Relvas, Cavaco e Carapeto Dias ou Dias Loureiro, Durão Barroso e qualquer pessoa que lhe possa dar mais guito ou poder… São muitos os exemplos. Mais ainda se contarmos com os amigos que, não indo parar ao governo, conseguiram criar ou enriquecer empresas com contratos bem asadinhos nessa altura e que, posteriormente, e apenas por amizade, acabaram por dar asilo, normalmente como directores não executivos, a muitos ex governantes no fim dos seus mandatos.
Na verdade, esta promiscuidade na política não é nova, não é invenção da esquerda nem da direita e vai continuar a existir num país em que se diz à boca cheia “num hospital convém ter sempre alguém conhecido, nem que seja o pessoal da limpeza”, porque é assim que nós somos. Até eu escrevo para aqui porque o meu agente conhece o pessoal que criou isto, não vim aqui parar pela minha reconhecida genialidade e escrita assaz mordaz. É o que é.
No entanto, caro PS, tem lá atenção a isto de chamar a parentada toda. Não é por causa das cunhas, compadrio ou tráfico de influências, isso é na boa, é só porque isto dá azo a que a minha família comece a perguntar porque raio apareço eu tão poucas vezes nas festas quando até as do governo têm tempo para almoçarem juntas todos os dias. Impostos pago o que for preciso, mas ter de ouvir o meu tio a dizer que o Jonas é sobrevalorizado não consigo.