Uma filha não pode salvar a mãe de ser mãe

por Cláudia Lucas Chéu,    16 Setembro, 2023
Uma filha não pode salvar a mãe de ser mãe
Cláudia Lucas Chéu / Fotografia de Vitorino Coragem
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Como teria gostado de ter tido uma mãe inteira. A minha, mesmo estando, nunca esteve de verdade, como as outras mães que eu via com os amigos pela mão no regresso da escola, a caminho de um lar que julgava melhor que o meu, cheio de beijos e abraços e olhares de atenção de cima para baixo, como devem ser mirados os filhos.

Do alto da sua sabedoria do amor, uma mãe lançando sementes para que fiquem na memória e sirvam como um presságio de que a vida vai ser dura às vezes, e não são poucas, e árida nessa matéria das ternuras. Uma mãe que gostasse de ser mãe, de me fazer o lanche e o almoço, sem pensar que não sabia ser mãe, porque estou certa de que nenhuma mãe o sabe.

Cresce-se com um coração coxo quando se tem uma mãe que se diz sem vocação, sem alegria que não seja forçada, sem disponibilidade para um abraço seguro. E agora, na velhice, vejo-a melhor que antes, apesar destes olhos menos claros de pessoa adulta mas que já trazem à boleia o ofício perpétuo da maternidade.

Vejo-a no esplendor do início das suas fragilidades, expondo cada vez mais uma ternura que não sabe onde poisar porque se habituou à guerra e não sabe nada sobre serenidade. Vejo-a à luta com a sua solidão, que as caminhadas após o almoço frio já não digerem, com a dor de se ver desamparada pela família que era suposto protegê-la. E então encho-me de amor por ela porque lhe reconheço as rugas de uma testa marcada de perplexidades com a vida que lhe calhou, uma existência que não soube mudar para melhor.

A minha mãe encheu-se de tristeza quando veio ao mundo e talvez o mundo ainda a tenha tornado um pouquinho mais triste, porque é um sítio cruel mesmo para os que nascem alegres.

A minha mãe entrou no mundo a chorar, como fazemos todos à primeira respiração, e assim foi prosseguindo sem conseguir estancar as lágrimas, fossem visíveis ou não. E eu sei que consigo pouco para a alegrar porque a minha mágoa foi-se esbatendo, esta nódoa na minha camisa branca favorita e que ainda perdura como uma medalha de frustração.

Sei que gostava muito, muito, antes que a noite se abata sobre as duas, de um dia a ver sorrir de verdade, de a ver inteira, mesmo que na sua irreversível solidão. Ninguém salva ninguém. Uma filha não pode salvar a mãe de ser mãe.

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