“Uma História da Leitura”, de Alberto Manguel: carta de amor aos apaixonados dos livros

por Mário Rufino,    6 Agosto, 2021
“Uma História da Leitura”, de Alberto Manguel: carta de amor aos apaixonados dos livros

“Uma História da Leitura” é uma carta de amor ao livro e aos leitores. Não há frase que não denote afecto pelas letras e pelos membros da tribo que as decifram. 

Há cerca de dez anos, o meu filho, então na primeira classe, abriu um livro e, devagar e aos soluços, leu uma frase. Foi a primeira leitura que lhe ouvi. Aí senti uma clivagem entre o momento anterior e o porvir. A sua existência tinha mudado ao transformar letras impressas em sons dotados do mesmo significado. Tinha-se transformado num leitor. 
Ao descodificar sinais no papel alcançaria universos vedados e unia-se a uma tribo com milhares de anos.  
Alberto Manguel, na epígrafe de “Uma História da Leitura” (Tinta-da-China) recorre a um poema de Robert Frost para sublinhar esta clivagem:  

“No dia em que reuniu as nossas cabeças, 
O destino tinha a imaginação ao rubro, 
A minha cabeça, ocupada com o tempo que faz lá fora, 
A tua, com o tempo que faz cá dentro.”
 

Na sua cabeça, começaram a caminhar seres numa realidade vedada a quem está no lado de fora, no lado de quem observa o silêncio da leitura. O leitor está de corpo na realidade dos outros seres humanos, mas de mente noutra dimensão, com tempo próprio e regras criada por um demiurgo morto há séculos ou acabado de conhecer num festival literário. 
Um isolamento benigno. Mas nem este silêncio foi a forma habitual de ler, há uns bons séculos, nem o livro foi sempre o suporte de leitura. O acto de ler tem sido actualizado ao longo dos muitos anos em que o ser humano aprendeu a fixar os sons em letras (depois das imagens) e em descodificá-las. 
Quando debatemos a desmaterialização do texto nos novos suportes, como o “tablet”, o computador pessoal ou um “e-reader” e o consequente papel secundário do livro, vemos que este resiste. Porquê? 
São séculos de história de afecto. O livro é indissociável do encontro connosco próprios, como disse Tolentino de Mendonça em “Louvor ao Livro” (discurso na entrega do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, publicado na revista Ler nº 157). 
No mesmo discurso, Tolentino de Mendonça afirma: 
 
“É verdade que há quem diga que mais do que falar em crepúsculo, deveríamos falar de transformação, pois o que está em ato é simplesmente uma alteração do suporte em que o livro é transmitido e não do livro propriamente dito. A forma actual do livro em papel é uma etapa de uma história mais longa que começou pelos textos gravados em pedras, em tábuas de argila e em rótulos, história que continuará o seu caminho.” 

A história do livro é uma história longa, assim como a nossa. Uma é indissociável da outra. Conhecer a primeira é conhecer a segunda. 
O leitor tem o privilégio de ser levado pela mão a percorrer esta história longa por um proeminente membro da tribo. Alberto Manguel, em “Uma História da Leitura” (Tinta-da-China) — livro que aqui nos traz — conta-nos a evolução da leitura e, em simbiose, a evolução do ser humano. Sem soberba académica.  
Não há frase que abdique da paixão pelo texto, pelo espelho que nos reflecte há tanto tempo. 
“Uma História da Leitura” é uma vasta possibilidade de nos interpretarmos.  
O autor argentino trabalhou durante sete anos na sua construção. Ao escrever um ensaio sobre o tema, Manguel percebeu que o mesmo merecia um livro. E assim viajamos desde o capítulo “Última Página”, passando por “Actos de Leitura” até aos “Poderes do Leitor”. São 443 passos para se fazer em silêncio. Deixe-se o leitor guiar por este bibliófilo desde a Pérsia, por onde o grão-vizir carregava a sua biblioteca em camelos, ordenados por ordem alfabética, até ao momento e local em que o leitor transporta milhares de livros desmaterializados num suporte electrónico. 

Não é uma viagem descritiva, factual, em que se pouco ou nada especula. De forma intrínseca, sem ostentação, existem ideias fundamentais da teoria da literatura. 
Sacudidos do pó escolástico, Jauss, Scholes e Eco, por exemplo, estão presentes desde o primeiro passo. 
O leitor mais avisado irá detectar nas ideias de Manguel a filosofia inerente à Obra Aberta (Eco), aos Protocolos de Leitura (Scholes) e à Teoria da Recepção (Jauss).  
A actualidade do texto é revigorada a cada leitura, num constante rejuvenescimento ou ressurreição. A hipótese de totalidade da obra, ou seja, de se tornar completa, remete para o poder do leitor. A este cabe a função de interpretar e completar a obra. O conceito de Obra Aberta intersecciona-se com a Teoria da Recepção, em que a personalidade do leitor, a sua vivência e circunstâncias, interagem com o texto. 
Diz Manguel: 

“E, porém, em todos os casos, é o leitor que lê o sentido; é o leitor que concede ou reconhece a um objecto, lugar ou acontecimento uma possível legibilidade; é ao leitor que cabe atribuir significado a um sistema de signos e, depois, decifrá-lo. Todos nos lemos a nós mesmos e todos lemos o mundo que nos rodeia para vislumbrar o que somos e onde nos encontramos.”  

Manguel não vai tão longe como Jauss, para quem uma obra literária só seria concretizada quando o leitor a concretizasse, “relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado” (E-dicionário de termos literários, por Carlos Ceia). 
Na concretização do sentido são levadas informações culturais, sociais, históricas e literárias. O leitor tem o seu constructo e faz-se valer dele ao completar o sentido do texto. E isto inclui todas as leituras anteriores. 
Em suma, Manguel foi brilhante na forma como interligou estas ideias.  
Andamos a falar uns com os outros desde a invenção da escrita há cerca de 6000 anos na Mesopotâmia. O autor consegue conciliar a diacronia na vida do livro com a sincronia, ou seja, com a relação do livro, num dado momento, com o seu leitor. 
Identificamo-nos com esta personalização do uso, ou mais do que isso, com o livro como companhia e coabitante. 
Alberto Manguel, em conversa com Eduardo Lourenço no Festival Literário da Madeira 2016, disse o seguinte: 

“Eu quero que suceda uma coisa quando eu morrer: É sabido que, quando morrem os apicultores, alguém tem de dizer às abelhas que o apicultor morreu, que não o esperem mais. Eu quero que alguém faça isso aos meus livros quando eu morrer.” 

A relação do ser humano com o livro é ancestral.  
“Uma História da Leitura”, 20 anos depois de Manguel a terminar, é essencial para quem gosta de livros, mas também para quem não conhece o poder do livro.  É essencial para quem pertence ou quer pertencer a esta tribo. 

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