Uma ilusão de pertença
Tenho Facebook basicamente desde que a plataforma chegou a Portugal. A primeira coisa que notei, à medida que o número de utilizadores ia aumentando, foi a facilidade em encontrar amigos de que se tinha perdido contacto. Toda a gente estava — ou estava a entrar — no Facebook. E durante algum tempo foi simpático ver ressurgir das sombras do passado uma catrefada de gente que já apenas habitava o subsolo da memória.
Recentemente decidi fazer uma pausa. Desliguei o Facebook uma semana e, quando o voltei a reactivar, passei a ir lá muito menos vezes e a demorar-me pouco tempo em cada visita. O modelo de negócio do Facebook é basicamente o mesmo que o do Google: maximizar o tempo de estadia do utilizador para desse modo incrementar tanto quanto possível a quantidade de anúncios que vê e em que clica. Não interessa propriamente se o utilizador fica mais tempo ou volta mais vezes por causa dos gifs de gatinhos ou da desinformação acerca das vacinas. Há oitocentos mil engenheiros, sociólogos, psicólogos comportamentais e especialistas de áreas por categorizar cuja missão na empresa é fazer com que cada utilizador passe o maior tempo possível ao ecrã do telemóvel. Desde que seja a fazer scroll no feed, pouco importa o conteúdo.
E eu estava a passar muito tempo no Facebook. O algoritmo é exímio a fazer-nos perder tempo. Desperta em nós a ansiedade de estarmos a perder qualquer coisa de terrivelmente importante — não estamos — quando nos afastamos do ecrã. É uma noção difusa, pois o «importante» aqui traduz-se na sensação de que na nossa ausência acontecem coisas que de algum modo aproximam as pessoas que a elas assistem e interagem com elas – botando likes, partilhando-as, etc. É um problema de comunhão, empatia e identidade. Um tipo gosta de se sentir compreendido, respeitado, admirado. Gosta de se sentir parte de qualquer coisa. O Facebook e a sua legião de programadores e cientistas consegue transformar — admiravelmente — aquela salganhada de conteúdos numa constelação de sensações capazes de criar um sucedâneo de sentido e de comunhão.
Mas esse conjunto de sensações com rosto de experiência não corresponde de todo à verdade das coisas, ou seja, a experiência de comunidade aparentemente palpável. De vez em quando temos sinais disso, quando damos conta por qualquer razão que alguém nos bloqueou — o Facebook não nos avisa disso; aliás, não nos avisa de nada que nos possa perturbar, pois isso poderia diminuir o tempo que passamos na plataforma —, ou quando nos apercebemos que o like é uma unidade monetária sobrevalorizada.
A sensação de que fora do Facebook não se perde grande coisa é acompanhada de uma lucidez acrescida: a de que o Facebook, aparentemente capaz de induzir uma leve anestesia na confusão dos dias, faz exactamente o contrário; o desfile incessante de notícias, indignações e radicalismos de todo o tipo reforça num sujeito razoavelmente normal a sensação de que o mundo é um lugar estranho e, em muitos casos, inóspito. Esse reforço, por sua vez, acaba por encaminhar o sujeito para contextos onde se sente mais confortável, seja do ponto de vista político, religioso ou simplesmente do ponto de vista afectivo. O Facebook, prometendo a máxima diversidade e transparência, é na realidade uma câmara de eco construída de forma a proporcionar uma ilusão de exterior. E, como em todas as ilusões, é mais fácil percebê-las estando de fora.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.