Uma nota sobre o que vejo
Estou sentado num sofá, na sala de uma modesta casa norte-americana. Na parede há fotografias a preto e branco, um gira-discos sobre uma mesa. Estou sentado no sofá, pernas cruzadas, umas meias até ao joelho, olho para o meu pé e penso: este sapato não é meu. A sala não é uma sala real, as suas paredes, o gira-disco, as fotografias, o sofá. É tudo falso, uma citação de. A minha roupa não me pertence, o meu penteado não é meu. À minha frente há um conjunto de cadeiras vermelhas, muito bem arrumadas: estou numa sala de teatro. Sou um actor, sentado num sofá que é parte de um cenário, a pensar na sua própria vida. Nas fronteiras que constantemente cruza na sua própria vida. Na fronteira que tão evidente se mostra à sua frente. De onde estou consigo ver o “mundo real”. Há uma enorme janela que me mostra pessoas-reais limpando a sala, cadeiras-reais vazias.
Apagam-se as luzes de serviço, uma qualquer verdade inunda a sala. De repente desapareceram as cadeiras vermelhas, a luz sobre o sofá é quente. Momentaneamente acredito na ilusão em que me sento – ter-se- á fechado a janela com vista para a realidade? O sofá é, repentinamente, o sofá; os sapatos, os meus pés. Levanto-me, abandono a sala, a casa, vou para o camarim. Prevejo os meus movimentos, os meus pensamentos. Consigo prever, com a claridade possível, que me sinto confuso aqui, confiante naquele momento; sou assertivo quando digo isto, hesitante quanto tenho que dizer aquilo. Conheço as palavras todas: as minhas e as dos outros. Penso no que farei como se recordando o caminho num mapa.
Regresso à sala com a memória do caminho. Já pisei este chão, já disse estas palavras, então porque me deixo levar pela sensação de novidade? Da janela, uma paisagem nocturna respira. É uma paisagem povoada, cheia de sons e olhares que penetram o nosso corpo – exposto, nu, frágil – e talvez alimentem o desconhecido.
Subitamente desperto para a minha circunstância: estou numa sala de aula, a ouvir um professor falar sobre Estado-Providência. Em relação a mim, uma distância. Assisto a mim-próprio, ao exercício de existir na sala de aula, a ouvir um professor falar sobre Estado-Providência. Tento decifrar o significado desta consciência, inteirar-me da realidade das coisas. Afinal, que me separa do momento em que me sentava num sofá que não o era? Terei os meus sapatos a embrulhar os pés? Que ondas desenham o meu cabelo? Quanta distância entre mim e o lugar em que estou? Ocorre-me pensar que não estou onde penso. Que fiquei em casa, deitado sobre a cama. Que emprestei autonomia ao corpo.
Há, entre mim e o que me rodeia, uma permanente desconfiança. Se caminho sem os óculos, míope, tanto quanto posso – o suficiente para não ver as caras dos outros -, à minha frente uma névoa, ar turvo, movediço. Não me diminui, a miopia: vejo a própria substância do ar. Vejo que entre mim e as coisas há uma camada que se move, que existe para, eventualmente, me desviar – como a paisagem nocturna, penetrante. Sem os óculos, consciente do ar, caminho em direcção a mais uma fronteira. Há realidade, dentro da própria realidade; a possibilidade de mais um nível de consciência, de mais um equívoco.