Uma oração para o veado sereio
Do edifício original de Jorge Croft, 1º Visconde da Graça, apenas nos resta a fachada. Desde o final do século dezoito que aquele quarteirão já fora ocupado por outros edifícios mas a este, em que hoje entramos, apenas a face pública é a mesma. Átrios alterados, vigas de ferro e tabiques acrescentados, para garantir o melhor uso possível aos seus novos senhorios, esta construção de 1905 é como um corpo humano, resultado de múltiplas utilizações e múltiplas visões acumuladas sobre o que poderemos imaginar da sua personalidade. Porque sim, até os edifícios as têm.
Lá dentro, atravessado o átrio, regras pandémicas cumpridas, subimos a escadaria monumental até sermos entregues ao nosso devido lugar. Estamos agora numa sala que acompanha perpendicularmente a fila de janelas da ala sul. É sala mas também já é quarto de dormir onde a obrigatória cama e os objectos pessoais nos revelam a intimidade do seu jovem ocupante. É claro que ali reside um jovem habitante, de que género ainda não sabemos mas algo nos diz que está prestes a revelar-se seu habitante. Há uma porta na parede à nossa frente mas o seu habitante revela-se por uma outra atrás de nós. Entra carregado com toda a sua bagagem, a maior possível que um só corpo consegue carregar. Vem molhado, apesar do seu impermeável. Lá fora uma tempestade ou algo pior empurrou-o para a nossa frente.
É um rapaz que não nos revela nome e que fala ao telefone com alguém que o conhece melhor do que nós. É alguém que está à procura do seu lugar tentando como quase todos da sua geração encontrar financiamento para o seu trabalho artístico. Como sobreviver entre trabalhos? Como pagar as contas? Como manter os sonhos apesar do pesadelo constante de não ter mais nada para fazer. Parece que esta geração é como todas as outras gerações artísticas antes deles, mas não é. Para os anteriores era preciso ser “rico” para ser artista. Ter outras coisas com que se alimentar ou então aceitar a vala comum e o esquecimento como destino. Alguma esperança na posteridade alimentava a criação até há muito pouco tempo. Esta geração sabe que não tem nem deve ser assim. Ser artista não é uma ocupação, é uma profissão que, tal como todas as outras, tem de ter regras, direitos, escalões, férias, protecção, horários, subsídios, para existir.
Felizmente, o espectáculo não era sobre isso e por isso era exactamente sobre isso mesmo. Na apresentação o jovem, enquanto se masturba, recebe um telefonema da mãe que aí nos revela o verdadeiro problema de tudo isto. Os outros não nos vêem como realmente somos, acham que é uma fase, um capricho, ou coisa de somenos no realismo pragmático do mundo capitalista onde vivemos. O telefonema da mãe é de homofobia, é de incompreensão sobre tudo aquilo que o corpo do rapaz faz para satisfazer a sua alma e preconceituoso sobre a aparente escolha que o rapaz fez sobre ser artista. Mas tudo isto parece que já fazia escola há muitos anos, a estranheza é que ainda hoje continue a acontecer e porque parece que irá continuar a acontecer sempre.
A oração do rapaz é sobre isso mesmo, o futuro. O que gostarias que os outros depois de ti sentissem dos teus desejos de hoje e por isso desafiou-nos, espectadores, a escrever um desejo numa folha e a colocá-lo numa garrafa que nos promete ser arremessada em alto mar para ser encontrada muito longe daqui e daqui a muito tempo. Escrevi e coloquei na garrafa um desejo que mantenho vivo mesmo agora: Por mais que pense que sou liberal e me considere curado pela cultura que insisto em absorver, mais tarde ou mais cedo, o meu filho irá apresentar-me um quadro impossível de prever, pelo que quererá ser, pelo que será ou pelo que quiser que eu seja e só aí poderei compreender uma mãe ou um pai que não aceitem a forma de amar dos seus próprios filhos. Porque a arte como o sexo é isso mesmo, uma oração pessoal que nos limitamos a comunicar ao edifício colectivo. O resto é só fachada.